Vazio derradeiro (o)

Homem soube transmutar a sede impelente

Na errância da estrada sem nomenclatura, terreno

Indistinto, indômito, cuja raiz desassombrada fora

Murmúrio surdo, ecoando na aurora primeva.

Entre árvores e pedras, ele se tornou pedra e árvore,

E da pedra ergueu vasta folha, que alimentou-o,

Servindo-lhe como repasto, da árvore esculpiu muralhas,

De sumo e fibra, resguardando-o da ameaça, dos seixos,

Que da terra eram lançados como injúria celeste.

Num vilarejo lembrando um cipreste reles,

Vida estática, virgem de claridade alguma,

Transcorreu uma noite vinhosa, bailou com a filha

Do homem ancião e foi engolfado por seus olhos negros,

Duas esferas escuras à deriva em uma lagoa de leite,

Mulher de ardente corpúsculo, derramando sombras

Em cada passo, palavras pairavam até atingir

Altitudes onde os olhos logo se exauriam, ele soube

Que jamais ela sairia de sua memória, sua escápula

Móvel e formidável, braços alvos, quase tenebrosos,

Roçando as franjas do mal, como a refulgência do mal

Se converte e se esvai em algum umbral. Ele dançava,

Sem medo, apenas o crepuscular prazer de uma fruta

Específica, uma ária tão aguda que trespassava a epiderme,

Desligava-o da lucidez, consumiria todo o leite,

Longos e fecundos goles, quando a fome e sede falecessem,

Celebrou uma romaria dos deserdados, não sabia mais,

Só o momento presente, um fogo que asfixiava o sopro,

Fogo extinto, labareda fugaz, como se debaixo da terra

Ardesse um incêndio, deslizava a mão sobre a pele dela,

Ela sentia a carícia dos dedos, assim como a árvore

Rocha nos roça, nos embriaga, ou seus corpos fundidos,

Passos em compasso místico, embriagante, ela parecia

Sombra nascente de um ópio volátil, ou algo mais remoto,

Como o derrame de sangue em uma guerra, os demais homens,

Sorte negada em meio ao prazer, ele só os observava,

Olhos presos, de alguma maneira naquele abismo extremo,

Também ele participava, a noite foi, foi formosa, o horror cedia

À impertinente e anelante pedra preciosa, cobiçada, ao despertar

Estava só, terra seca e impura o circundava, céu misturando-se

Com o solo escarlate, silêncio selvagem, fragmentos de lembrança,

Ternura remanescente, ele ou os deuses agraciaram-no,

Arrumou os pertences na mochila, seguiu o caminho traçado pelo

Corpo, uma onda de vida líquida o amparava

No vazio supremo.

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{o}

Soube de homem que transfigurou sua sede

Numa caminhada, numa estrada sem nome, o terreno

Era impreciso e indecoroso, cuja raiz intrépida foi

Um sussurro que ouviu na aurora mais antiga,

Entre árvores e pedra, foi árvore e pedra, e da

Pedra ergueu uma grande folha que lhe serviu

De comida e da árvore moldou a muralha de sumo

E fibra que o separou do perigo, das pedras, que

Do céu eram arremessadas como maldade da terra.

Em povoado, que lembra mais um infame cipreste,

Uma inviolável e imóvel vida jamais alumiada,

Passou uma noite de vinho, dançou com a filha do

Homem mais velho e foi tragado por seus grandes

Olhos negros, duas bolas negras a boiar numa lagoa

De leite, mulher de corpo tão febril que derramavam

Sombras a cada passo e suas palavras flutuavam até

Que estancava em alguma altura onde os olhos já

Cansavam, soube que nunca mais a esqueceria,

Sua formidável escápula móvel, seus braços de

Brancura angélica que beirava a reticência do mal,

Como se sua beleza desse volta e morresse em algum

Umbral. Dançava, não havia medo, somente a soturna

Delícia de uma fruta demarcada, um ária tão aguda

Lhe entrava a pele e da sanidade o descolava, tomaria

Todo aquele leite, goles longos e férteis, quando a sede

E a fome morrem juntos, e celebrava a assombrada romaria

Dos esquecidos, não sabia mais, apenas presente, e um

Fogo que lhe estrangulava o vento, fogo morto, fogo fátuo,

Como se embaixo da terra fizesse o trabalho, deslizava

Sua mão na pele, ela lhe sentia os dedos a roçarem

Como uma árvore roça os cactos mais embriagados, ou

Com seu corpo colado no dela, os passos em algum

Compasso místico e embriagado, sentia-a como uma penumbra

Que nascia de uma droga, do ópio mais evanescente, ou

Mais longe, como o sangue que se derrama de uma guerra,

Os outros homens, que a sorte os havia privado do prazer,

Apenas olhava e de algum modo naquele abismo extremado

Também participavam, e a noite foi, foi bela, o horror se dobrava

Diante do diamante impertinente, mas desejado, quando acordou

Estava sozinho, ele e terra seca e impura, um céu que se mistura

À terra vermelha, o silêncio era bruto, a lembrança, fragmento,

E uma ternura na memória, foi ele, ou foi dos deuses um agrado,

Colocou suas coisas no bornal, e seguiu o caminho para onde

O corpo apontava, uma onda de uma vida líquida lhe amparava

Do vazio derradeiro.