Não se mate

Há um tempo, Carlos, de absoluta depuração: tempo este, hoje

em que as nuvens são cinzas, plúmbeo céu dos calcanhares férreos.

Não lastimes, não chores os séculos!

Amanhã: doce a alvorada dourada

Límpido, o crepúsculo das horas

derramará sereno sobre tua fronte cansada e rija toda

a aquarela dos lilases.

Inútil, Carlos, lamentar as lágrimas ácidas da

noite pétrea e dos ídolos fatigados.

Não arranques teus fâneros todos com a fúria fugidia

do peito exaurido que relutou em portar-se equânime

nas torrentes dos corpos.

Não grites a ira do ímpio sopro que

rompe a gênese das tormentas.

Não saias! Não movas! Não atire-se para os fundos inertes ou congêneres cantos em

arredia avidez.

Caminhe devagar. Andes, Carlos, sem andar.

A cada passo que dás, moves contigo todo o Firmamento.

Espere, plácido, vencido o furor do apogeu das ondas

que renasça a harmonia da Ordem para

que seus pés dancem um cada novo passo.

Não transpasse a si, menino infame, com a lâmina fria

da navalha que te apara os pelos da ofega face.

Andes, sem que te movas muito.

Sem que te movas mais que te pede a mover o perfeito

compasso da orquestra celeste.

Não reclames abrigo ou supliques em letreiros luminosos

a paralisia perpétua das águas que irrompem o cume

cerrado de tuas órbitas enfadonhas e lavam

teu peito amarelo e amargo.

Espreites em silêncio as alcovas onde esconde-se o

rodopio das formas,

com a lúcida senciência daquele que vem, pioneiro, à luz e

ao sentires do mundo: estes, que visitam-te hoje

para fenecer ao terceiro ou último suspiro do Sol.

Não te afogues na maré de si, Carlos, em voluntário

padecer profano.

Subas o farol do meio-mar e repouse no

banco marmóreo sob os candelabros estelares e a luneta que aponta as luas de Vênus

onde vigiam de ombro exequível as

memórias do sineiro, da viúva, do microscopista,

do vendedor de sonhos e da fiandeira cega que tece o fim sem-fio,

que cantam as correntes oceânicas e fazem ninar as crianças.

Não arranque os ouvidos quando a sinfonia pausar as madeiras e metais e

a percussão esbravejar o prenúncio do silêncio.

É na Potência, Carlos

único infinito: Nada

que nasce o som das trombetas dos Anjos.

(Enquanto reticente dobra-se às espáduas incoercíveis na eterna lamúria da última cena,

sentado na última cadeira em que se não vê o vermelho veludo do vazio,

Por detrás das cortinas cerradas, o leiteiro

morto a tiros e verbos

arranca sua máscara escarlate e

liga a vitrola ao som de Strauss).

Nicolle Ramponi
Enviado por Nicolle Ramponi em 29/01/2020
Reeditado em 29/01/2020
Código do texto: T6853523
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