A folha amassada

A gente se beijava às escondidas.

Ninguém podia ver.

Eram beijos demorados, molhados, de um querer além do normal.

Era bom, era muito bom.

A gente esperava a rua adormecer,

a luz do poste sumir e, assim,

os nossos corações batiam, batiam, batiam...

O seu cheiro dormia comigo.

Meu cheiro seguia com você. Algumas noites, dormíamos juntos, colados,

os corpos suando, os lábios sorrindo,

os sonhos se apresentavam tão doces que nem queríamos acordar.

A gente se comia com os olhos. Meus olhos enxergavam os seus,

seus olhos desnudavam minha alma e corríamos para longe de tudo,

em busca da redenção.

Nos queríamos aflitos e pela aflição

a nossa história era bordada nas palmas de nossas mãos, porque nos tocávamos e era tão bom,

era tão bom valsar pela linha imaginária do infinito da felicidade sem querer voltar.

Éramos meninos demais para decisões mais ríspidas.

O nosso mundo era o nosso mundo e não havia repressão, nem limites,

muito menos distância.

A gente se beijava e nossos beijos estalavam como se fossem ploc.

O coração explodia e corria em nossos sorrisos

o desejo de soltar todas as pipas presas no universo dos nossos desejos mais subterrâneos.

Mas a gente não ficou bem na foto.

Ela desbotou com o tempo.

Meu rosto ficou desfigurado e seu sorriso passou a brilhar em outras estações.

As mãos passaram a sentir frio, os dedos reclamavam ausência e a rua passou a dormir para sempre.

Os cheiros se confundiram com as desgraças não poupadas pelos acontecimentos mais trágicos.

Você nunca mais olhou no meu olho.

As lágrimas molharam a direção do meu olhar.

Viramos as costas e nada mais parecia ter sentido quando vimos as linhas das pipas quebradas.

Passei a ser norte e você sem fim.

Maculei minha vontade de você com poeira e esquecimentos. Minha imagem amarelou e sumiu da moldura da sua retina. Passamos a ser retidos. Retemos o sabor dos nossos beijos como pagamento do amor que aflorou dentro dos nossos peitos.

Passamos ao estágio de homens.

A razão matou os meninos de ontem.

Era uma vez uma história piegas de amor entre dois serem

que não aceitavam as vírgulas. Um dia o amor perdeu a elasticidade,

ganhou várias vírgulas e reticências.

Os pontos ficaram por conta dos desencontros

e quando nos reencontramos tudo era silêncio.

A velhice nos acomodou.

Nos entregamos a outros amores.

Deixamos florescer sementes de flores sem cores nem frutos bons.

Tornamo-nos seres comuns, sem desejos, vontades,

outros sonhos...

Nossos beijos já não estralam, não fazem nenhum barulho, mas toda vez que abro essa janela emperrada,

minha alma ainda enxerga a existência de pipas

sob a estrada que me liga a você.

Marcus Vinicius