Quaresma

E acabou o carnaval

Cessou a folia na rua

Mas minha fantasia continua

Apegada à pele como lepra

Como letra de marchinha

Grudada na memória

Sou pierrot apaixonado

Deixado pela colombina

Num canto, desenxabido

Folião aposentado

Da alegria efêmera

De um girassol à meia noite

Desço às cinzas nesse quarto

Numa quarta-feira de cinzas

No cinza de um dia qualquer

Em que nenhuma fênix levanta

Desço ao cortejo abandonado

Folião atrasado

Ansioso pela incandescência do sábado de sol que não mais há

No próximo sábado, Aleluia!

Expectativa de uma ressurreição incerta

Deus, meu! Por que me desamparaste?

Por quarenta dias hei de esperar

Por quarenta anos já dura minha sina

E a quaresmeira morta em minha janela

Se apega em ramos secos, desbotados

Folião arrependido

De ter perdido a alegria de outros carnavais

Encara-me o desafio do jejum de carne

Em que minha carne é mais uma vez consumida

Com lágrimas de azeite

E sangue dessalgado

Mar morto, água gelada

Tanto gelo, tanto sal

Meu corpo bóia e se recusa

A descer às profundezas gélidas

Onde a vida é impossível

Bacalhau

Noruega, Chile, Portugal

O mundo todo em um mesmo calendário

E eu sou um peixe fora desse aquário

Quarto, quarta, quaresma

De se negar morreu o Cristo

Folião abnegado

Enquanto eu, bem menos nobre

Sofro a sina de um Judas malhado

Culpado

E sem moedas de prata

Sem força, sem forca

E sem carnaval

Éder Rafael de Araújo
Enviado por Éder Rafael de Araújo em 23/02/2016
Código do texto: T5552770
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