A Propósito do Absurdo

Deitado sobre a cama,

a cidade funciona ao redor.

Sei que na clausura do quarto —

aquelas paredes intransponíveis ao corpo,

o chão frio e indiferente —

não sou mais do que qualquer outra forma na rua,

como os jornais que voam na noite,

as buzinas impacientes,

as sirenes avisando que a ordem social foi maculada,

ou as lixeiras que desabam lançando gatos pelos muros.

Meu corpo está limitado,

mas o pensamento alcança os auges do absurdo.

Saio à rua, entretanto.

Empunhando duas espadas

que criei para minha própria ruína,

vou matando o meu dia.

Com a maior, eu o entrecorto

em pontos objetivos que me dominam.

Com a menor, eu o extermino

lentamente em vinte e quatro punhaladas.

Construo um barco sobre o oceano de pez,

sabendo que não se moverá.

E, enquanto isso,

numa caçada selvagem,

brandindo a arma que apenas verte suor,

vou engaiolando avidamente

a valiosa fauna brasileira de seis bichos.

E o absurdo aguarda.

O absurdo aguarda

sob os escombros transvestidos de ordem,

onde rastejam os vermes, em sua importância.

O absurdo aguarda

como uma realidade iminente,

recôndita nas atitudes reprimidas.

Entre as plantações de blocos

do plano do banal,

qual rato que se enfia em meio aos dejetos,

o absurdo espreita, inerte.

Há algo que pulsa no músculo do absurdo,

qualquer coisa que queima e que não se pode conter.

Absurdo é sempre ligeiro,

e num instante já adentra em qualquer homem comum.

E então as horas são esquecidas,

e a rotina voa apitando pela janela.

E rasgam-se os papéis,

e quebram-se as convenções.

E a liberdade,

a real,

vem varando as árvores da floresta urbana

e cresce, entrando no mais ínfimo dos seres.

Também no homem.

E então esquece-se os meses,

as semanas e os anos.

Também não haverá segundas para odiar nem sextas para almejar.

Apenas o sol

queimando sobre o chão,

e o caos necessário sobre a Terra.

Marcel Sepúlveda
Enviado por Marcel Sepúlveda em 09/06/2015
Reeditado em 17/06/2015
Código do texto: T5271605
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