CARLOS GOMES
(IN MEMORIAM)
" Amor ubique loquitor: et si quis borum quae
leguntur cupit andipisci notitiam, amet.... Lingua
amoris et qui mon amat, barbara erit. "
(S.BERNARDO - Sermão 79, In Cantic).
Era uma Alma sem que o Verbo não traduz;
Alma de bronze e arminho, Alma de treva e luz,
Alma de Carlos Gomes!
Embora desfradando as asas do teu Verso,
O heptacordio de ouro ergas alto e mais alto,
Num grande êxtase imerso;
Embora da Arte a Esfinge heroicamente domes,
Da Inspiração Galgando o supremo planalto;
Essa Alma colossal vestir e que não podes,
Com a púrpura real dos Hinos e Odes.
E onde acharás, Poeta, o homérico esqueleto
Para a carne ideal dessa enorme Epopéia?...
Lança fora o cinzel; do Estilo quebra a lima:
Cruza os braços!... Que idéia!
Querer prender uma águia ao fio de uma rima
E o sol encastoar na garra de um soneto!
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Um dia entrei-lhe n' Alma:
O Maestro tocava um trecho de CONDOR;
Era por uma tarde esplendorosa e calma...
O piano imitava uma tiorba angélica,
Em surdina, "smorzando" uma canção de amor.
Ouviu-se após, gritar uma frase patétioca,
Na antífona cruel da Morte e da Paixão.
Cada acorde lembrava o côncavo de um ninho,
Onde a Musa sonhava, à sombra de um carinho;
Dentro de cada nota,
Vermelho, a palpitar, batia um coração;
Dentro de cada harpejo - uma saudade ignota;
Pregada numa cruz, tragicamente tosca,
Fechava lento e lento, as asas violetas,
Erguendo para o céu os olhos rasos d'água...
Era um trecho da FOSCA...
Que insólita tristeza!
Parecia que em volta, estranhas nuvens pretas,
Como a sombra feral de uma indomável mágua,
Drapejavam de crepe a alma da Natureza!
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De repente, um acorde olímpico e brutal
Trovejou, como um sino enorme de cristal,
Rolando lá do céu, partido em mil pedaços!
Surgira a evocação da mata brasileira:
Uma escala cromática,
Desnastrando o cabelo e sacudindo os braços,
Saltos nua e gracil da selva traiçoeira,
E, rasgando os espaços
Da Harmonia, num gesto indômito, fantástisca
Feiticeira selvagem.
Abriu de par em par o abismo da folhagem:
Que esplêndida visão! mangueiras milenárias,
Altas como frontões de verdes catedrais,
Troncos descomunais, floras extraordinárias
Ogivas de bambus, "braúnas" de alamares
Soberbos de esmeralda, e "paus d'arco" reais,
Derramando em redor um turbilhão de pétalas
Cor de jalde, troféus suspensos das lianas,
"Cactus" de acúleos de aço e de bizarras sépalas,
"Jacarandás" erguendo arcadas trinfais,
Sob as quais, soberanas,
A pata do tapir e o ronco dos jaguares,
Como surdos trovoes ciclópicos ribombam,
Assanhando na TABA os caboclos valentes!
"Acauãs" Lacerando o cocar dos palmares,
Galopes bestiais godilhões de serpentes,
Urros de ódio e de amor, berros, dentro dos quais
Síncopes de silêncio ás vezes tombam,
Pesadas de terror
De chofre...
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Vulcão ameaçador
Onde a seiva e o sangue, acesos dia e noite,
Em vez de lava e enxofre,
Num borbulhar enorme
De folha e de plumas,
Têm cóleras de mar e rajadas de açoite,
Aromas sensuais de orquídeas e baunilhas,
Labirinto de brumas
Em cuja escuridão, farta, a giboia dorme,
Avalanches de luz, catadupas de flores
Espedaçando o véu das glaucas escumilhas,
O idílio e a tragédia, assombros e esplendores,
Nuvens de colibris
De petrina de onix, ilamanda de safiras,
Topázios e rubis,
E enchendo o coração da floresta sombria,
Da penumbra da loca à folha da palmeira,
O augusto temporal de cem milhões de liras!...
Era uma evocação da mata Brasileira,
Era do GUARANI a audaz Protofonia!
1901