CUNHAPORÃ - UMA HISTÓRIA DE AMOR - PARTE 01
PALAVRAS DO AUTOR
Escrito há quase 40 anos, considero “CUNHAPORÃ – UMA HISTÓRIA DE AMOR minha obra maior, na poesia.
Três motivos me levaram a publicar este poema no Recanto das Letras.
1-O reconhecido esforço do Owner deste site para mantê-lo um lugar decente e sério.
2-A boa receptividade que teve o ensaio sobre Wagner e Nietsche, publicado em capítulos, bem como as mensagens de incentivo que recebi dos leitores sobre o mesmo, às quais agradeço.
3 – A carta que recebi do editor de uma revista cultural, solicitando-me autorização para publicá-lo. Transcrevo abaixo a carta, onde ele apresenta o poema muito melhor do que eu o faria!
E como esta revista é de circulação fechada de uma grande empresa, achei por bem publicar a obra também num espaço público, como este.
CUNHAPORÃ – UMA HISTÓRIA DE AMOR" é um poema-romance épico, composto de 271 estrofes e 1495 versos. Por sua extensão, tal como o ensaio referido acima, ele será publicado em 9 capítulos semanais.
Escrevi-o como homenagem a Gonçaves Dias, em agradecimento por seu monumental poema \"I-JUCA PIRAMA\", que considero um divisor de águas na poesia brasileira.
Sua composição demandou um ano inteiro de trabalho e pesquisa. Obviamente, devo muito a algumas pacientes pessoas, que dedicaram boa parte do seu tempo para orientar este ignorante escriba nos meandros da vida indígena. Sem elas, este trabalho não teria sido possível.
Assim, agradeço às tribos Caigangues do Noroeste do Rio Grande Sul, com quem convivi vivenciando seu modo de vida. Sua paciência e dedicação ao meu trabalho chegavam a ser comoventes.
Agradeço de maneira especial ao Cacique Ita-Ussú (Pedra-Grande) – já falecido - há época residindo em Porto Alegre, pela paciência que teve com este teimoso homem branco, que, de gravador em punho, tomou muitas horas de seu tempo, até poder entabular com ele algumas conversas em seu idioma, o guarani. Com ele aprendi sobre a vida na selva, os costumes e as tradições ancestrais da Nação Tupi.
Agradeço também ao Professor Leopoldo Zaninni - já falecido - pelas aulas sobre costumes indígenas do Sul do Brasil. Com ele aprendi sobre os costumes e modo de vida da Nação Charrua, os índios exímios cavaleiros que habitavam a amplidão dos pampas.
Agradeço ainda ao grande número de pessoas, leitores e críticos que me ajudaram a polir o texto até sua versão final. Seriam muitos para nominá-los pessoalmente.
A uma delas, entretanto, a Dra. Laura Albuquerque de Mendonça, indianista, agradeço pelo entusiasmo com o projeto e pelo fato de não ter me permitido desistir dele quando, por vezes, o cansaço me abatia e me ocorria a idéia de que eu estava tentando algo além de minha capacidade. Suas informações sobre questões indígenas, seu apoio e sua confiança foram decisivos para a conclusão da obra.
Finalmente, agradeço aos leitores que de boa vontade adentrarem a este mundo mágico para viverem a história de um grande amor.
É por eles, e para eles, que escrevo.
Se Mestre Gonçalves Dias, de onde estiver, puder considerar este trabalho como retribuição a tudo de belo que nos ofertou, fico feliz, porque o simples fato de falar seu idioma e poder ler sua magnífica obra nos originais, já me torna um felizardo.
JB Xavier
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Carta da Revista Círculos do Saber
Quando o poema Cunhaporã, de JB Xavier me caiu às mãos, pensei tratar-se de mais um dos tantos que chegam à nossa redação. Mas, quando encerrei a leitura, percebi que tinha diante de mim uma das mais portentosas obras poéticas já publicadas no idioma português, no Brasil.
No decorrer da leitura desfilou diante de mim uma monumental história de amor, vivida por dois amantes pertencentes a nações indígenas tão diferentes entre si, quanto é possível a dois povos se diferenciarem pela cultura, tradições, modo de viver,etc.
De um lado, Cunha Porã, a bela índia tupi, prometida em casamento a Ygarussú, o maior dos guerreiros da floresta. De outro, Nhuamã, o magnífico cacique charrua, tribo que vivia nos pampas e amava os grandes espaços.
A força e energia do guerreiro tupi e a agilidade e gentileza do guerreiro charrua encontram-se no amor a Cunha Porã, e por ela eles moverão céus e terra e irão até às últimas conseqüências.
JB Xavier nos descreve a beleza sublime de Cunha Porã de maneira magistral, mesmo por ser apenas sugerida. Num estilo cristalino, porém diferente e único, ele nos concede a oportunidade de desenvolver mentalmente nossos próprios protótipos de beleza, aliada à fragilidade, ansiedade, inocência e sonhos de uma esperança de ser feliz. Ele nos projeta num universo de sonhos, e nos reinstala a confiança no amor, tornando-o algo atemporal, que não pode ser destruído.
O autor poderia ter ambientado a história em qualquer outro país, como a América do Norte, por exemplo, cujos principais representantes índios são sobejamente conhecidos no mundo todo. Mas ele preferiu falar dos índios brasileiros, como fizeram José de Alencar ou Gonçalves Dias, poeta a quem, aliás, o poema é dedicado.
Assim, há referências a Condá e Viri, caciques que viveram em nossa região, nomes quase esquecidos por nós, mas que em seu tempo foram líderes incontestes de suas respectivas nações.
Descrições surpreendentes e encantadoras passam longe da pompa rebuscada daqueles que tentaram alçar vôos literários dessa magnitude.
Seus versos nos encantam e nos conduzem por cenários absolutamente maravilhosos onde nos deslumbramos com o desenrolar dessa grandiosa história de amor.
Versejando nos mais diversos tipos de métrica, alterando seu ritmo, criando seu próprio estilo, ou em versos brancos de grande beleza, JB Xavier demonstra total domínio da arte de poetar, e ouso dizer que ele já pertence aos grandes nomes da poesia nacional brasileira contemporânea.
Amigos leitores, tenho orgulho de lhes apresentar o poema Cunhaporã, uma obra que resgata alguns aspectos de nossa cultura, e pelo melhor dos modos: em nome do amor.
Revista Círculos do Saber
Dr. Juarez Munhoz – editor
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CANTO 01
O CANTO GUERREIRO
Na selva sombria os grandes carvalhos
Se afastam de lado a ceder aos atalhos
que tecem caminhos nas florestas densas...
Caminhos escuros que os índios aprontam
Se cruzam, se afastam, de novo se encontram,
Formando clareiras nas selvas imensas...
A onça se esgueira, ligeira, felina,
A lua que nasce por trás da colina,
Enquanto o inhambu que no solo dormita,
Dão cores à mata, e o ruído que fazem
Embalam o sono de outros que jazem
No chão e nos ninhos: A vida palpita!
A brisa então surge, numa calma dança.
Estrelas se juntam àquela bonança,
Brilhando medrosas à luz do luar.
A prata da lua vai vencendo o dia
Que vai se apagando na lenta agonia
Enquanto outra noite já vai começar.
A noite começa num hino de cores
O Dia recolhe seus hinos de amores
E as serras distantes já vão se afastando...
As aves, em bandos, em grande algazarra,
Revoam felizes, qual louca fanfarra,
E aos ninhos queridos vão se acomodando.
No chão o regato suave desliza.
Desagua num lago, que a braços com a brisa
Vibrando sua face em vitral se transtorna.
Enfada-o a luta dos grandes titãs.
Conforta-o o lindo coaxar de suas rãs,
Divino coral que seus charcos adorna.
Aqui e distante, na água espelhada
Um peixe assoma com cauda dourada,
Brincando com as folhas que caem bailando.
Pousando tranqüilas vão logo dançar
Divino bailado à luz do luar
Que o lago, aos poucos, vai iluminando.
E as nuvens branquinhas, já avermelhadas,
Trazem o sangue em que foram manchadas
Na imensa batalha, e vão se afastando.
E a noite então surge em mil esplendores,
trazendo paixões, inspirando amores,
E com as plantas, as águas e o céu contrastando.
A brisa aos poucos vai enfraquecendo
E as sombras da noite então vão descendo
Trazendo o silêncio à grande extensão.
Os vales cobrindo, clareiras, montanhas,
Descendo ao mais fundo de suas entranhas.
Na selva palpita audaz coração!
E pia a coruja na noite singela
Voando na mata: gentil sentinela
Que a noite vigia acesa e atenta...
O rio que desce dos montes distantes
Desfia seu canto, e nas águas dançantes
Depõe suas mágoas, e chora, e lamenta.
Na face do lago a imagem tão clara:
Jassy refletida no reino de Yara!
Profundo silêncio! as matas caladas!
Estóicos, à noite os deuses levantam
E vagam na selva, e riem, e cantam
Os cantos do Olimpo, de eras passadas.
É então que nas tabas as tribos guerreiras
Contam seus casos á luz das fogueiras.
São cantos de heróis, de lutas, de morte,
Que aos jovens valentes só fazem sonhar
Os sonhos de guerra, o acompanhar
Os homens da tribo, rijos e fortes...
Nenhum se acovarda, no entanto, e ainda
Esperam a idade - de todos benvinda -
Em que o braço forte o tacape erguerá.
São quase crianças, leais e valentes,
Que a vida entregam, alegres, contentes,
À luta esperada, que um dia virá .
Num círculo ao longe as moças escutam
Os cantos de guerra que eles disputam.
Cantos de guerra que fazem sonhar.
As cândidas, doces, suaves morenas
Trançando as sedosas e lindas melenas
Esperam com um deles poderem casar.
Que sonhos não vão em seus olhos escuros?
Que ardentes desejos nos corpos tão puros
Não causa o canto dos heróis-guerreiros?
Donzelas que sonham os sonhos amenos
Que fazem vibrar seus corpos morenos
Que em curvas se alongam, lascivos, fagueiros.
No centro da taba, brilhando no lume
Derramam-se os homens. Da noite o negrume
Qual manto profundo, a tudo encobre.
Em volta do chefe derramam-se eles.
Os jovens, os velhos, e todos aqueles
Guerreiros valentes, da estirpe mais nobre.
É Ygarussú, o tupi imbatível,
Da flecha certeira, do golpe terrível !
E o som de sua voz, que em guerras ecoa
Atinge o inimigo, já enfraquecido,
Imbele, cansado, doente ou ferido.
Por isso distante seu nome já soa...
Quem visse sua flecha acertar o mutú
Ou em plena carreira prostar o inambu...
Na aldeia não havia sequer um guerreiro
Com força bastante para retesar
Em toda a extensão o seu ybirapar,
Por certo o mais duro dos duros madeiros.
Quem visse o tacape ferir a akã
De seus inimigos, quem visse Tupã
Clareando suas trilhas nas noites sombrias,
Por certo haveria de reconhecer:
Tão cedo de novo não ia nascer
Guerreiro assim destro pelas cercanias
E amores desperta; e loucas paixões
Caminham com ele! e mil corações
Por ele deliram em idolatria!
É rude, valente, amigo da Sorte.
O grande oyakã, cantando a morte
As lindas morenas assim seduzia.
E o fragor desses cantos na noite subiu,
Até que o cacique o silêncio pediu.
Somente o lume ardia faceiro
E o pesado silêncio às vezes quebrava.
O grande cacique de pé se postava
Cantando à aldeia seu canto guerreiro:
“Irmãos meus de sangue!
Às vezes, exangue,
Amargas torturas
Da guerra bebi.
Nas provas mais duras
Nas quais fui testado
E em grandes agruras
Não esmoreci.”
“Meu tino me serve
De guia no escuro,
E que assim se conserve
Em dias por vir.
Que eu vença o futuro
temores, cansaços,
Que eu esteja seguro
De nunca fugir.”
“A quantos matei?
Jamais vou saber!
Jamais me lembrei
De contar inimigos...
Só resta entender:
Não há diferença
Em matar ou morrer.
Em mim só me abrigo.”
“Já fui pelas serras
Vencendo a má sorte.
Andei longas terras
Que nunca esqueci.
A braços com a Morte
Andei tão distante.
Com povos mui fortes
Lutei e venci.”
“Olhai o meu peito
E o claro matiz
De um talho perfeito
Que fez-me o embate.
Mas morro feliz
Se a lança atirada
Fizer cicatriz
Que enfeite o combate."
E isto dizendo, olhou os guerreiros
Que sérios, nervosos, se agitam ligeiros
Prevendo o que então viria a seguir.
E apenas num gesto, rápido, tenso,
Tirou de seus ombros o manto imenso
Que suave ao seu lado, no chão foi cair.
Seu corpo saltou para a noite escura
Marcado nas lutas de tanta bravura.
O espanto deixou os guerreiros prostrados.
Que lanças suas mãos não haviam partido?
Que vezes, na dor, sem um só gemido
Não tinha o tacape do ímpio quebrado?
Seu rosto severo, seus braços possantes
E o altivo que havia em todo o semblante
Tornava-o muito acima dos seus.
E a pira queimava incensos amenos,
E o fumo a subir era como acenos
Ao bravo que agora queria ser deus.
"Eu sou o seu deus!" - bradou Ygarussú.
"Mais rápido ainda que o veloz suassú !
Mais forte que o raio, o vento ou a lança!"
Pasma a aldeia!
Jamais a floresta
Ouviu coisa assim!
Que os deuses em festa,
Se o tenham ouvido, não queiram vingança...
Rolou no horizonte um trovão taciturno:
Tétrico aviso ao audaz importuno.
Quem desafia o poder de Tupã ?
Quem é que, em deus, por si se entronara?
Quem é que a si próprio assim se elevara?
Quem ousaria prever o amanhã ?
Os homens em roda ouviam enlevados.
Futuros guerreiros olhavam, sentados,
O grande cacique que os céus lhes mandara.
As moças sonhavam os sonhos das virgens,
Enquanto o valente cantava as origens
Do clã que o - um dia, há tempos - gerara:
"Em guerras distantes
As tribos errantes
vagavam constantes
Por ermos hostis.
E a tribo que agora
O penhor revigora
E a mesma de outrora:
Os bravos tupis.
O vento na mata,
O som da cascata,
A lua de prata
Deixava antever
Que em tempos vindouros,
Tal qual um agouro,
Das lutas os louros
Iriam colher.
O céu incendido
Que cobre o bramido
Do índio ferido
Em remoto iporã ,
É o mesmo por certo
Que ao índio desperto
Vai deixar aberto
O poder de Tupã .
Poder que encerra
O verde da serra
O grito de guerra,
O som do maracá.
É o mesmo que assim,
Nas eras sem fim
Forjou num festim
O cacique Condá.
Condá, que às vezes
Aos vis portugueses
Impôs os revezes
De lutas sem par.
Um corpo pintado,
Um rosto irado,
E no crânio, alado,
Branco canitar.
Penacho frondoso,
Porte garboso,
Arco lustroso
Condá exibia.
Nas guerras insanas
Santas, profanas,
Em voz soberana
Seu brado se ouvia.
Guerreiros! eu canto
O riso, o pranto
De quem sofreu tanto
P’rá nos ter aqui:
Condá e os demais.
Por certo lembrais
Do chefe Virí.
Virí, o seu braço
Deixou forte traço
No chão, no regaço
Dos tempos de outrora.
As mãos calejadas
De vidas tomadas.
Sua lança ousada
Tivesse eu agora!
A força da Terra
Que em si toda encerra
As mortes na guerra
Clama por ti!
A ti só eu chamo,
Tupã! eu conclamo:
Desfaça o engano,
Renasça Virí.
São esses os bravos!
Beberam dos favos
Das lutas. Escravos
Do lutar e vencer.
A mim delegaram,
A mim confiaram,
Em mim transplantaram
Sua força e poder!
Ouçam-me agora
Que chega a hora
De ir-me embora.
Seu deus, pois, eu sou!
Meu canto já finda.
Na guerra benvinda
Meu braço ainda
Ninguém derrotou."
E fez-se silêncio. Calou o gigante.
E tudo ao redor silenciou nesse instante
Sagrado, a render-lhe uma muda homenagem.
E enquanto alguém lhe entregava o manto,
Os sons tão heróicos de seu nobre canto
Ainda ecoava na densa folhagem.
Assim o tupi, com seu porte altaneiro,
Reinava na aldeia, e seu canto guerreiro
Deixou toda a taba feliz, enlevada.
Seus olhos, no entanto - discreta procura -
Buscavam a beleza, a meiguice, a candura
Do rosto sereno da doce amada.
As moças ao longe, em nervosos sorrisos,
Deixavam antever, em indícios precisos,
O amor dedicado ao grande oyakã.
Mas fogo no peito ilustre havia
Queimando por dentro, em lenta agonia
Por seu grande amor, sua Cunhaporã.
E quem duvidava que tão nobre canto
Visava o amor esperado há tanto
E que em breve, sabiam, iria esposar?
Seus olhos furaram a noite escura
Buscando a beleza, a meiguice, a ternura
Que o canto guerreiro queria agradar.
Nas faces das moças, lindas, tingidas,
Em vão procurou as feições tão queridas
Sem no entanto encontrar o doce olhar vago.
Olhou ansioso além da amurada.
Sabia onde ela seria encontrada.
Afastou-se correndo a caminho do lago.
Subiam no espaço as fagulhas do lume
Levando aos céus o espesso negrume.
Silêncio na mata! findara-se a festa!
Tornou-se mais fraco o estalar da fogueira.
Mil olhos seguiam a marcha ligeira
Do chefe e herói, a sumir na floresta.
* *
GLOSSÁRIO DA parte 01
Mutú - Cana-de-açúcar,Pequeno galináceo.
Inambú - Ave canora de canto melodioso
Suassú - Veado, gamo
Ybirapar - Arco
Maracá - Chocalho com cabo, usado em cerimoniais.
Akã - Cabeça
Oyakã - Cacique
Iporã - Agua bonita; água tranquila, remanso do rio.
Tacape - Porrete pesado,borduna
Tupã - A maior divindade do panteão tupi.
Jassy - Deusa representada pela lua.
Yara - Deusa das águas.
Ygaraussú - Canoa grande; grande embarcação; navio
* * *
Próximo capítulo: O LAGO ENCANTADO
Até lá!!!