EVOCAÇÃO DO RECIFE nº 2
(Que Manuel Bandeira me perdoe...)
Sou filha do Recife
Não da União, Aurora, Soledade...
Essas vieram-me bem depois
Nasci dos seus becos sórdidos
E escapei entre as papoulas
Que enfeitavam meus cabelos
O Recife da Violência, das Drogas
De alma desasfaltada
E coração movido à lama
Que pulsa por trás do Shopping Center
Recife sem igrejas barrocas
Teatros nem praças floridas
Recife que nem o frevo é capaz de alegrar
Dos barracos de tábuas
Onde desde cedo
Aprende-se, na marra,
A suportar a frieza do chão
E não gritar com a dor das feridas
Que santo nenhum ousa sarar
Recife dos riscos, dos restos,
Dos ratos que me atormentavam
Lugar onde baratas não assustam
O corpo só treme diante do gatilho
Recife de estômago vazio
Sem luas cheias
Sem estrelas, sem poesias
Sem canto dos pássaros
Nem árvores para brincar
Recife sem primavera
Com um mau hálito
Que violentava meus sonhos de criança
Recife que vi bem de perto
Que nunca me plantou esperanças
Um Recife que também era Antigo
Mas não aparecia na televisão
Recife desértico, árido, seco
Que mata mais que o Sertão
Recife do Coque, Ibura, Curado
De Brasília Teimosa, Guabiraba,
Linha do Tiro, Morro da Conceição
Recife de tantas Águas, Altos, Encruzilhadas
Do meu Santo Amaro das Salinas
Que nunca me abandonou
Ainda lembro-me menina
De anjo, acompanhando o seu andor:
“Ó piedoso Santo Amaro
Entoamos com fervor
Bendizemos vosso nome
Esse hino de louvor...”
O Recife que só colocava-me no colo
Quando eu corria pelos seus manguezais
Amarrava caranguejos
Para libertar minhas fantasias
E iluminava o Rio Capibaribe
E todas as suas pontes
Com gotas daquela alegria
Um Recife que está morrendo
E velo o seu corpo à distância
Ansiosa pela última pá de areia
Recife dos becos sem saídas
Sem ruas nem avenidas
Que mesmo com tanto esforço
Não me prendeu em sua teia
Um Recife que tentou
Mas não matou esse amor
Em meu peito despertado,
Recife dos meus monstros, mitos, lendas,
Tantos anos adormecido,
Acorda
Nesses versos soluçados
Teu crime não foi prescrito
Recife da minha infância
O mesmo dos meus pesadelos
Recife que aqui eu vomito!