Eu

A concepção foi acidental.

Havia tantos! Casa cheia de bocas famintas e brigonas...

Eu: uma a mais. Eu: desespero. Medo!

Resultado da desatenção. Do machismo, da falta de bem querer e amor.

A décima. Mais uma!

Enquanto crescia, lá fora, muitos problemas. Fui problema também.

Fui logo abandonada no silêncio da gestação.

Apenas mais uma. Nasci com força e esforço. Só busquei a luz. E fui.

Não havia tempo para o toque ou para que me percebessem crescer.

Cresci à revelia.

Disputei espaço e atenção entre os problemas.

Acumulei culpas.

Culpada por nascer naquela época, naquele momento.

Culpada por ser a menina que precisou tirar a atenção daqueles que já estavam no mundo e que nem tinham sido curtidos ainda.

Culpada por chorar e pedir mamadeira e trocas de fralda. Sempre na hora errada parecia.

Culpada por ser mais uma boca para alimentar.

Culpada por me tornar menina, moça, mulher, mãe.

Culpada por passar as etapas da vida e não sentir o sabor de nenhuma delas. Sentir somente o amargo da culpa.

Culpada por ser fruto da derrota, do egoísmo, da solidão, do pouco e do nada.

Culpada por não ser nem amada e por isso abandonada no meio de todos.

Criada à revelia.

Sem perspectiva, sem amor próprio, sem desejo de vencer as próprias barreiras.

Apenas eu.

A concepção do abandono de mim mesma.

Luciane Mari Deschamps
Enviado por Luciane Mari Deschamps em 08/01/2012
Código do texto: T3428348
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