ANOS DE VIGÍLIA

Estou estreando hoje em Recanto e como publicação inaugural escolhi este poema por ser ele um marco para mim: escrito em 1983, quando eu contava 32 anos de idade, ele supera tudo o que eu havia escrito até então e inicia uma coletânea denominada "Ideário", que vai até 1995. Os principais poemas dessa fase são mais longos, explorando um tema de sentido existencial ou psicológico. Gosto das rimas ocasionais, de modo que elas não são metódicas. Agradeço antecipadamente eventuais comentários. Rafael Teubner.

ANOS DE VIGÍLIA

Não nas lidas, mas na Vida,

Encontrei-me um dia vencido,

Distante, em meio a coisas vãs,

Como se fosse uma manhã

Esperando infinitos amanhãs.

E por uma fresta do sem-fim

Refloresceram os meus ancestrais,

Satânicos. Seduzido, perplexo,

Supus-me mais, bem mais;

Inventei-me um deus venal,

Vesti casaca e desfilei

Por hotéis cosmopolitas, ébrio.

Estou tão longe das coisas

Que não posso mais ser alcançado,

Senão por um perdão.

Deus, tenho razões para crer,

Evadiu-se no oitavo dia da Criação,

Indo-se a criar outros tantos Universos,

Eternamente, como uma compulsão.

A onipotência é o pecado de Deus.

Não, só me concedo um perdão

Humano, calmo, sem desdém.

A lira dos desejos

Em mim delira.

Ouço clarins

E uma cantiga longínqua

Nalgum resto de viola.

Suponho-me agora não só.

Deus!

Rebenta nos sonhos meus

Uma vontade de Deus.

Perscruto a fundo a ferida,

Adivinhando qualquer coisa

Já não alma, já não eu.

Deus, acalentou paixões?

Amou, como os deuses gregos, mulheres?

Cultivou Ideais?

Teve outras aspirações

Que não as minhas? Iguais?

Concebeu-se, em sonhos, humano?

Imaginou o seu Criador?

Invejou-o?

Temeu a solidão, o vazio?

Surpreendeu-se em ilusões vãs?

Contemplou de sua janela de ócio

O desfile de néscios pelo Universo?

Viveu tudo? Chorou?

Supôs-se, por instantes, não-Deus?

Cosmovias, são cosmovias,

Estradas de inexaurível porvir,

As sagradas artérias de Deus,

Onde a eternidade pulsa

De plenitude e cansaço.

Anos de vigília sondando o além

E mais nada posso ver

Senão uma luz inefável e boa.

Ver Deus? Não, nem em sonhos;

Não seria mesmo preciso.

As horas passam num raio de luar...

Ouço ainda clarins

No oculto da noite que fui antes.

Não, Deus, não vos dedicarei fé

Com a convicção dos delirantes –

Livrai-me, horas lúcidas,

Desse cômodo infortúnio.

A lira estala e delira;

Clarins, ouço vivos clarins,

Trovões, alegros de viola.

De um canto do Universo,

Melódico, pomposo, guerreiro,

Deus emana.

Não súbito reamanhece

Ao som de cantilenas pagãs.

Reamanhece. A alvorada rosicler

Derrama em pétalas infinitos afãs.

Deus emana. Reamanhece!

Assim, manso... Como todas as manhãs.