Montanha de Maomé

Acordei numa montanha

Quando senti a brisa

Que me despertou

De um pesadelo imemorável

Com carícias no rosto

Dormi nesta montanha

Outra vez

Na erva fresca de abril

Aquela que ainda é húmida

E tinge a roupa de verde

Vi ao longe o povo

E a sua merenda

Devia ser uma da tarde

E cheirava a fritos

E a vinho tinto barato

Ouvi a concertina

E o cantar desafinado

Que cantava

A cantiga da efemeridade

Sobre o que não se vê

E o que não se tem

A voz era tão áspera

Que acordou os ventos

E os atiçou a mim

Como um toiro bravo

Ouvi a política de tosga

As premissas de merda

Os "ses" e os "se fosse eu"

Ouvi os de classe média-baixa

E os de pobre

Com discursar sucinto

Dizia-se:

"Um lencinho vai na mão

Vai cair no meio do chão"

Depois o vinho foi mais coerente

E disse palavras que não conhecia

Como se fosse uma língua fina

E isto fosse um almoço aristocrático

Mas havia um menino

E o menino sorria

Por isso está tudo bem

O pai pôs-lhe uma automática nos braços

E uma magazine

E disse-lhe: "Fá-las contar"

Estavam ali cinco horas de trabalho

A quase dois euros por cada uma

Por isso "Fá-las contar"

"Faz mira por aqui e pressiona no gatilho

Aponta sempre para o estômago

Inspira e expira

És tu ou ele"

O pai era pastor

Mas não havia nem uma ovelha

Nem no cume montanha

Nem no pé da montanha

O pai era pastor

Mas em vez de um cajado

Tinha uma metralhadora

Disse-lhe:

"Filho, sou pastor sem ovelhas

Vou descer da montanha

Elas hão-de estar no vale

Se alguém cobiçar a nossa montanha

Faz mira por aqui e pressiona no gatilho

Aponta sempre para o estômago

Inspira e expira

És tu ou ele"

Calou-se a concertina

Calaram-se os cantores

Calaram-se os debatedores

E toda a chinfrineira demais

Ouvia-se só um rádio

Que emitia ruído branco

Ecoando pelos picos do mundo

Findou o almoço

Entornou-se o vinho

Guardaram-se as pataniscas

Esfregou-se os cantos da boca

Com as mangas do casaco

Deu-se graças ao senhor

Por lhes ter matado a fome

E pediu-se ao senhor

Que o possa fazer mais vezes

Este milagre dos milagres

De dar migalhas ao estômago

Avistou-se o abismo

De cá de cima

Olhou-se-lhe de perto

Continuadamente

Sem um pestanejo

E sem qualquer murmúrio

Eu voltei a adormecer

Sob as ervas de abril

As que, cujo cheiro,

Trazem-me memórias

Que me confrontam no sono eterno

Sérgio Peixoto
Enviado por Sérgio Peixoto em 08/04/2023
Código do texto: T7758682
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