ENTÃO…EU PEÇO DESCULPAS…

De repente, eu nasci.

Banalmente...sem flashes

como já nem se nasce todos os dias.

Foi num leito de hospital público,

Onde toda dor era acalmada,

sem ratos

nem baratas pelos caminhos

e descaminhos.

Nasci de parto cesárea tecnicamente assistido.

Não fui notícia fabricada

e ganhei certidão de existência oficial.

Minha mãe não ficou de cócoras

para oxigenar meu cérebro.

Peço desculpas.

Berrei meu Apgar 10.

Um privilégio vir ao mundo

Com tanto fôlego...

e tanta coragem.

Levei um tapa na bunda e inspirei um ar puro.

Peço desculpas pelo feito

de tão pobre improviso.

Fui precoce na decisão:

Muito cedo, me olhei no espelho

E escolhi um batom pink.

Nem pedi licença.

Rita Lee também não.

Fomos cor de rosa choque e pronto.

Ninguém nem questionou!

Choque de partida

e verso de chegada certeiros!

Peço desculpas. Por ambas.

Cresci como criança…

No jus naturalismo de gênero

E sequer tive conflitos

Frente à boneca de pano

Velha e rasgada

Aquela…que eu adorava,

que acalentava com instintivo carinho de mãe;

brinquedo perdido

num coletivo que seguia na paz não incendiada.

Tampouco fui impedida

De brincar de carrinho de rolimã

nem com as bolinhas de gude,

nem de empinar pipas

Na enxurrada da chuva farta que caía

A encharcar nossos pés e corações

de moleques da rua.

Mas,

Nunca fomos crianças das ruas...

Peço desculpas por nós.

Então,

tive o tesouro mínimo:

família,

fé, religião

E educação.

Nada proposital, eu juro.

Eu agradecia pela comida e pedia benção

aos meus pais para o sono dos anjos.

Peço desculpas pelos sonhos.

Sonhar e buscar é ato revolucionário às vidas inerciais.

Eu só saberia disso mais tarde.

Meus cabelos eram lisos

Escorridos…mas só até a adolescência.

Depois, encresparam com graça,

Rebeldes… e assustados aos ventos do mundo.

Peço desculpas pela metamorfose natural.

Minha pele desbotada e sardenta

branca de dar dó,

Sequer pensava em sentir vergonha

Da falta notória de melanina.

Meus amigos nunca tiveram cor.

Todavia...

Éramos todos de cor única,

duma bela e invisivel aquarela colorida

De corpo e de alma unos.

Sempre tive três refeições ao dia

E era algo que me passava batido.

Era só dignidade natural

que me parecia ser de todos...

Tal direito,

não constava nem nos púlpitos

e nem nas tribunas mentirosas.

Peço desculpas.

Meu dinheiro parco ,

O pouco para o lanche da escola

(Que nunca foi high school!)

Dava para um yogurt batido

Que só depois

me valeu um cálculo no rim.

Fui socorrida a tempo

de dialisar a farra gastronômica

que nunca lesou ninguém,

a pedra era só minha,

mas peço desculpas por isso.

O mais grave do hoje imperdoável:

eu era criança viciada em escola,

e nos livros,

e no esporte

e na música!

Idolatrava meus professores.

E nunca sofri Bullying por isso!

Viajava nos números, nas letras e nos sonhos.

Mas nunca entendi a matemática dum conjunto vazio!

Imagine a dum mundo vazio...

Ter e concretizar sonhos é um privilégio indesculpável.

Ninguém perdoa.

Peço desculpas, mesmo assim.

Um dia ganhei uma matricula do cursinho

Para disputar uma vaga num vestibular:

Como assim , ganhei?

"Alguém ganha alguma coisa nesse mundo?"

me perguntava minha mãe.

Faculdade privada, que horror!

"coisa de gente que compra diploma."

Ouvi dum magnânimo.

As públicas eram só para os grandes...

que construiriam um país do futuro!

Quem acreditaria em futuro conjunto vazio?

O conjunto seria o vazio de todos...

Passei no vestibular.

E Martinho da Vila fez uma música pra mim.

E seu eu fosse uma cabeça pequena?

Pela primeira vez senti medo.

Então, pedi desculpas por ousar diferente.

“felicidade! passei no vestibular…mas a faculdade é particular”

Me empoderei no samba do bom do Martinho!

Cantei junto. Ele acreditava em mim…

Agora, eu também acreditaria.

Agradeci mas…por via das dúvidas, pedi desculpas.

Deu certo.

Segui com o canudo nas mãos,

A aprender só bem depois

O que banco algum de universidade ensinaria…

Sobre o todo da construção...dum conjunto vazio.

Quantos conjuntos vazios de propósitos, inclusive.

Socorri a vida e a morte de muitos conjuntos,

as dúvidas vazias, sem respostas, que eram minhas também.

Vi nascer e morrer aos montes…

De causas evitáveis e evitáveis…

Sempre muitas.

E pedia desculpas.

Quase sempre vidas bem evitáveis também.

Nasciam abortadas,

e nas ruas... suplicariam por abortos tardios.

Morri junto a cada uma delas...

Abortei sonhos...como elas.

Como se assim

Tudo me fosse desculpável.

Então, eu me pedia desculpas.

Desculpas por não

Saber viver morta de causas evitáveis.

E segui,

e socorri

e escrevi versos vivos.

Ressuscitei cenas perdidas.

E rezei.

E acreditei e desacreditei.

E pedi desculpas mil vezes

Pelo todo de mim

Que ousou ser privilégio

De verso livre, visceral.

Verso que ousou,

Verso que chegou,

Verso de tudo e de todos, a todos.

Verso carnal

Ambiental

Espiritual.

Ah, sim, ia me esquecendo:

Peço desculpas...por até hoje não ter feito tatuagem alguma.

Justifico:

Seria impossível me tatuar a vida já tatuada de tantas peles...

nas dores e nas fomes dos tantos ossos marcados no tudo.

Mas sei que nada disso é desculpável.

Se existir é delito penal,

Reexistir, então, é pena de morte perpétua,

o mais ousado e imperdoável dos atuais delitos humanos.

Já a dignidade da raça una...parece luta perdida.

Portanto, peço desculpas a todos.

Sinceras desculpas.

Nunca foi minha intenção desobedecer...

Tampouco ofender a maioria.