Um certo retirante

“Fui no Tororó

beber água, não achei...”

Num misto de raiva e dó

o meu Tororó deixei,

querendo fugir da seca

mudei de berço e de teto;

eu vim lá de Tororó

respirar fumaça e pó

nesta selva de concreto.

Minha sorte foi sacana.

vejam que vida cretina:

quis driblar a minha sina

nestas terras paulistanas...

Aqui não tem seca não:

tem raio, enchente e trovão,

fila do leite e do pão

e um bandido em cada esquina.

Tem imposto e extorsão,

tem barraco, tem mansão,

tudo num só quarteirão,

todos na mesma rotina.

O retrato da anarquia:

tem radar, tem inspeção,

tem pardal, tem gavião,

urubu, rato, lixão,

tem sem-teto e invasão

de quem já tem moradia.

Frente a frente, todo dia,

tem guerra de sintonia

no rádio e televisão.

Pra roubar sua atenção,

tem pastor vendendo unção,

do puro azeite Maria.

Noutro canal (que ironia!)

O padre vende perdão

- nem precisa confissão -...

E o locutor anuncia:

Vai de brinde uma oração.

Aceito qualquer cartão

e um ano de garantia.

Sai semana entra semana...

Aqui a tragédia urbana

é pior que no sertão...

Aqui água até que sobra,

mas tem um cabra que cobra

Em nome do seu patrão.

É ele o que manda lá;

é quem libera o alvará

pra água chegar na bica.

Coitado de quem não paga...

O castigo multiplica.

Depois do corte é uma saga

pra de novo a água ter.

É que nem alma no limbo,

correndo atrás de um carimbo:

- Quem pode me socorrer?

Hoje abri minha torneira,

só saiu vento e poeira...

É assim toda semana!

Mas não perco a galhardia,

pagando as contas em dia,

lamento a sorte tirana.

Deixei Tororó pra trás

com os seus oito orixás

sobre a água soberana.

Na garganta sinto um nó:

deixei o meu Tororó,

vim beber fumaça e pó...

Como é que a aparência engana!

A chuva aqui não tem dó,

lá fora cai um toró.

E a torneira vazia

parece que me anuncia

outro golpe charlatão:

“Aceito qualquer cartão...

Sou a sua salvação,

mas não lhe dou garantia!”

Aqui a coisa é assim:

a cobrança é pontual,

quem atrasa leva pau,

sem choro, vela ou motim.

Pra pagar não há clemência,

já a entrega é sem urgência...

Eita serviço ruim!

É roubo de todo lado...

Tá cheio de “colorado”,

mas nenhum é Chapolin.

Granja Viana, 25 de fevereiro de 2015 – 21h04