Velhice
Existo mais no porta-retrato antigo sobre o criado-mudo do que em mim.
O espelho já não reflete o que sou, mas apenas como me veem.
Acumulei muitas dúvidas e consegui suportá-las. Se isso é sabedoria, eu não sei.
Hoje, sou feliz apenas quando relembro os tempos nos quais fui feliz.
Já fui demais, e o que queria; agora, descanso.
A vida ja não mais me apetece porque ninguém, exceto os que existiram na miséria e os gulosos, sente vontade de se alimentar de sobras.
O segredo para uma vida boa é esse: nunca comer demais, ficar, se possível, sempre um pouco com fome.
Aprendi que calendários são importantes somente para: os compromissados, os ansiosos e os que ainda não viveram o suficiente.
Tinha o desejo de Heróstrato, mas não incendiei templos: minha vida foi constante.
Não tenho contas a pagar, parentes a visitar, e as mágoas que possuo, não posso resolvê-las, porque minhas pendências são com mortos.
Assim, fiz, em vida, tudo o que o destino me delegou, não tenho tarefas. Mas as coisas não estão em seu lugar, e, quando Ela vier, me encontrará aqui, olhando a rua, debruçado na sacada de um corpo em ruínas, esperando-a bater à minha porta.