Eu dissonante de mim

Metade de mim é meio mole,

Metade de mim é maciça,

Metade de mim morde,

Metade de mim noticia,

Que algo de mim murmura,

Que toda a vida devia,

Levar a vida todo dia,

Ao sabor da boa costura da felicidade vadia;

Que o todo de mim grita,

Para qualquer vadio,

Ou qualquer ouvido na porta,

Que vá cuidar de sua vida,

Mas também,

Dos netos que a filha um dia,

Emprestou em obséquio,

Da Ruth, do Pedro e do Rodrigo,

Do gato, da mala e da carta,

Da mãe, do amor e do amigo,

Que a vida é muito curta;

Metade de mim acrescenta

Que é melhor rir da vida farta

Do que antes ser ranzinza

Porque algo de mim de tão cinza

Tudo em mim ele aborta;

Metade de mim confronta,

A outra metade de mim,

Que não satisfeita em ser torta,

Quer tudo de mim,

Não se farta,

Com o suor de cada dia,

Com o passeio de ônibus,

A fartura da marmita,

E também a casa própria

No alto da escadaria,

E que tem vista panorâmica;

Tudo em mim se mistura,

Em razão de ser eu mesmo,

Todo em fonte de sussurros,

Oceano de pedidos,

Que metade de mim se controle,

Faça as pazes com a outra metade,

Aquela que é meio mole.

Todo de mim, no entanto,

Não deixa de ver encanto,

Na Ruth, no Pedro e no Rodrigo,

No gato na mala e na carta,

Na mãe, no amor e no amigo,

E nos netos, mas é claro;

Que são filhos da Maria,

Que sabe viver inteira,

À custa de metade de mim,

A tal metade que noticia,

Que a outra metade berra,

Para ir à fila de emprego,

Que a vida só é vazia,

Por ser a alma vadia,

E se ouve atrás da porta,

O ronco do descansado.

E o todo de mim não se cansa,

De viver com esperança,

E um arrepio na espinha,

Pelo voto obrigatório,

E talvez necessário,

No cientista promissor,

Capaz de criar a fórmula,

Para que metade de mim não morda,

Mas não deixe de soprar.

Para que metade de mim acredite,

Que outra metade de mim,

Eleve todo meu espírito,

Sem usar a dinamite,

Pois metade de mim é maciça,

E se espalham os estilhaços,

Os troços, os paus e os bagaços,

As palavras duras, os recados,

A passagem, a marmita e o barraco;

Mas tudo em mim é intenso,

Faz de mim como incenso,

Queimar até virar cinzas,

Ao sabor dos olfatos,

Eu perfumo ou não perfumo,

Aí não tem meio termo,

Sou assim o tempo inteiro,

Música inebriante,

Ou acordes dissonantes.