Velório I

é tudo muito carregado.

vida e morte,

dor e alegria.

o interessante mesmo,

é não serem antagônicos

tampouco excludentes

são, em verdade,

complementares.

um não existe sem o outro.

eu respiro um ar pesado,

lágrimas me enchem

(e incham) os olhos

há um corpo, o responsável

por reunir as pessoas aqui,

um que eu sei

não mais ter vida

um que eu não pude ver

antes do último suspiro

deitado

sem vontade

nem resistência

num caixão

cuja tampa vai baixar

sem tornar a levantar

jamais...

de todas as possibilidades

nenhuma existe mais

é um corpo imóvel

sem o sopro,

sem a vida

toda a ação orgânica

responsável por manter a vida

não cumpre mais sua função.

mas não é só isso

não é só um corpo,

carne, sangue e osso

além disso

é cada memória

é cada espaço corrido,

e cada pedaço de chão pisado

é cada roupa já vestida

e cada perfume usado.

é cada abraço já dado

(e os não dados também)

é cada "eu te amo" dito

(os silenciados também)

não é só corpo imóvel, afinal

é um corpo cuja vida

já não está em si

cuja existência já

não se sustenta

como um dia sustentou

é um corpo incapaz

de colocar-se de pé

e é justamente isso

que faz minhas pernas

bambeaream

um corpo de olhos fechados,

que me obriga a fechar também

um corpo que não respira,

me fazendo faltar o ar

o que esse corpo

me comunica?

o que aquele que

já não pode abrir a boca,

teria a me dizer?

essa presença silenciosa

anunciando a si mesma

enquanto certeza,

me convoca,

desesperadamente,

àquilo que a torna possível.

o anunciar da morte,

o mostrar-se si mesma,

me pede vida

e vida, então

lhe entrego.

respondo ao corpo silencioso

à boca fechada,

com sangue no canto direito

ao rosto estampando morte.

o rosto negro,

velho,

os cabelos crespos,

grisalhos,

estampam morte

esse corpo, em que cada átomo

estampa morte...

esse corpo me grita vida!

me pede: viva!

e eu respondo,

lhe atendo o pedido:

minhas pernas falham

a cabeça gira

e reconheço:

isso é vida.

me pediu vida

e é assim que respondo:

vivo.

Thaís Alanna
Enviado por Thaís Alanna em 07/08/2017
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