Alguma Coisa

Difícil conversar com esse cidadão sem que a cabeça comece a vagar. Sinto o ar-condicionado, leio lombadas de livros médicos, observo esculturas e molduras, ouço a voz fanhosa abafada pela máscara falando qualquer coisa que não me ajuda, ansioso por minha vez de falar que não, não foi isso que perguntei e não, não é isso que quero saber.

- Nada de beber.

Assinto, mentiroso, boca de litro.

- Você tem que ir devagar. Ainda há tempo. Você ainda é jovem.

Eu já vou, mas devo estar fazendo errado. Porque a minha cabeça começa a vagar. De repente sou criança levando cascudos, berros na orelha de uma tia, fugindo do tarado do fliperama.

- Nada de maconha.

- Nunca mais, nunca mais.

Reafirmo, sincero. A despersonalização e a paranoia da última vez constituíram trauma suficiente.

Pergunto da apatia, que é muita, incômoda.

- É natural com o ansiolítico que você se acalme para algumas coisas.

Não sei como é a boca do homem que me fala. Sempre de máscara, cuidadoso e misterioso, de fala mansa e entorpecente. Coço a barba por dentro de minha máscara, me remexo na cadeira, troco a cruzada de perna, estico os braços, mordo os beiços, ouço a voz dele se derramando enquanto a voz na minha cabeça está enlouquecida formulando outras perguntas.

- E os pensamentos de suicídio, que faço com eles?

- Tome outro comprimido do antipsicótico.

- Hum.

- Você tem que identificar o que te angustia. Sentir. Perguntar: por que estou me sentindo assim?

- Eu já não tenho mais aquela raiva. Queria desmamar dessas porras desses remédios.

- Observe. Sinta. Na próxima você me conta como está. Daí talvez possamos começar diminuir.

Talvez se eu visse a boca dele se mexendo, a língua batendo nos dentes separando sílabas, eu desse a devida importância. Estou aqui buscando uma cura, uma melhora, e só consigo me sentir mais contrariado. É idiossincrático meu, isso, ou é ele? O problema inicial foi sanado, mas dessa cura decorreu o nascimento de outros. Antes queria morrer, agora não me sinto vivo. Que vida. Isso lá é vida? Ir dia após dia dançando a dança dos dias.

- E qualquer coisa você me liga.

Levanto, cumprimento com um aperto de mão. Sinto um alívio de ter terminado, ainda que não esteja satisfeito. Me dá alívio me desvencilhar de pessoas no geral. Fico com a pulga atrás da orelha com o término rápido da sessão. Eu tinha angústias. Por que elas se dissipam quando entro consultório? Entro cínico? Tenho que melhorar enquanto ser humano. Mas parece que não tem pra onde ir, que meu teto de sociabilidade, intelectualidade e amabilidade já foi alcançado. E que minhas angústias que não são inexprimíveis, são pífias.

- O atestado médico, faz favor.

Céu azul, fim de tarde. Uma passadinha na lotérica. É preciso ter fé em alguma coisa.

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 31/01/2023
Reeditado em 31/01/2023
Código do texto: T7708095
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