até ontem eu amei você

não sei dizer por quê estava tão nervosa por haver um momento em que estaria sozinha com você, pois não é como se ainda houve uma faísca entre nós – ao menos não mais em você. digo isso pois em mim havia um magnetismo que me atraia a você, mas eu repeli ao ficar tagarelando sem parar. tive medo que o silêncio pudesse ser traiçoeiro e abrisse a nossa ampulheta do tempo em que quase aconteceu nós dois.

não é mais como se nos conhecêssemos.

até ontem eu sabia muito sobre você.

eu sabia tudo sobre você.

a tua comida favorita e aquela que odeia, os lugares que já visitou e os que gostaria de ver um dia, as coisas que fazem os teus olhos brilharem, as músicas que ficavam no repeat do teu celular enquanto fazia todas as tuas atividades e lembrava de mim, as gentilezas que praticava sem perceber ou esperar reconhecimento, os desenhos mal feitos para agradarem quem amava que odiava as manhãs, os abraços que remetiam a calmaria.

me toquei que não conhecia mais você ao ouvir o que tocava na playlist do teu carro. não é que não gostei das músicas, só não se encaixavam mais na imagem que eu tinha de você. entre as canções que tocaram, uma me pareceu combinar com o momento melancólico, mais triste, sentimental, de adeus.

triste também a metáfora que condizia da forma como estávamos naquele momento: no final da estrada, quase chegando no destino final, na última música do álbum que não ouviríamos nunca mais, na última nota da canção descartada das nossas vidas.

você pularia a última faixa no último segundo para não ter que ouvir mais a melodia que te liga a mim.

até ontem eu sabia de cor todos os teus tipos de sorrisos e risadas. e sorriso que era só para mim, com as covinhas e olhinhos pequeninhos que me diziam tantas coisas. é esse som que me persegue pouco antes de ir dormir.

até ontem eu sabia tudo sobre o teu olhar. o brilho que havia nos teus olhos tão esperançosos. ao encará-los agora eu percebo uma tristeza que luta para esconder.

até ontem eu sabia quando não estava bem, na forma como ficava na tua e me olhava nos olhos pedindo colo. eu sabia que me amava na maneira como me olhava fixamente até eu ficar vermelha e pedir “para” ou tirava fotos minhas sem que eu percebesse. eu deveria ter gravado esse olhar na minha mente e guardado numa garrafa a ser lançada no mar esse amor que existia em ti e não existe mais.

até ontem eu sabia onde moravam as tuas dores, o tamanho dos teus sonhos, as alegrias corriqueiras do teu eu jovem e livre. eu sabia dos teus medos, do teu primeiro amor, da primeira desilusão amorosa, da primeira vez que teve o coração partido, do amor que veio depois e te trouxe o que sempre almejou. eu fui o primeiro muitas vezes.

mas agora você tem novos traumas, felicidades, responsabilidades e novos olhares para ofertar. você tem novos beijos e abraços e cheiros e restaurantes e passeios e músicas e livros para experimentar. você tem outras pessoas com quem se abrir e outro amor com quem compartilhar tudo de novo que está chegando na tua vida. a barulhenta risada, o sorriso com os olhos fechados, o abraço-casa, o jeito bonito de olhar e, enfim, a própria vida serão ofertadas a quem você escolheu está no seu lado.

até ontem eu achava que sabia muito sobre você, meu amor. mas saber é apenas mais uma palavra vazia e perdida no monólogo de tudo que construímos um dia e se perdeu como uma carta colocada na garrafa que boia no mar em busco de um cais para aportar.

até ontem eu amei você com o meu coração egoísta que sabe que você está onde deveria estar.

Belinda Oliver
Enviado por Belinda Oliver em 29/03/2022
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