A vida é um sopro

Tudo ainda está muito confuso, na minha cabeça ainda não faz o menor sentido e meu ser se recusa à aceitar. Nos falamos ainda ontem e há poucas semanas falamos sobre sonhos de anos atrás.

Quando dizem que vicio mata, eu nunca pensei no quão irônico a vida poderia ser: acendendo um cigarro - uma das poucas coisas lhe faziam manter viva a lembrança do seu pai; morto pelo vicio também - enquanto andava de moto, por um descuido, perdeu o equilíbrio e sua cabeça, ao encontrar-se com o chão, levou sua existência para outro plano.

Hoje eu trabalho, e estou fazendo piadas enquanto atendo clientes, como sei que você faria. Estou trabalhando na frente do computador, então é fácil esconder minha tristeza. Ninguém sabe que enquanto eu faço essas piadas e eles riem, na verdade estou chorando lembrando de você.

Eu cheguei a ficar indignado em como você foi negligente com você mesmo por ter se descuidado assim e morrer de maneira tão pífia. Mas então eu parei para refletir: eu ando de skate desde os 13 anos de idade (influência sua também), e de bicicleta desde os 8, de patins desde os 10... Pergunte para mim: quantas dessas vezes eu botei um capacete para ir na rua? Praticamente nenhuma.

Fora o fato de praticar artes marciais e participar de campeonatos de luta.

O que impede que eu tivesse o mesmo destino que o seu? A moto estava à 20km/h. Skates, bicicletas e patins atingem facilmente essa velocidade. Um chute diretamente na cabeça então, nem se fala.

Infelizmente só me resta aceitar que talvez realmente fosse a sua hora.

Talvez a única coisa que não entre na minha cabeça mesmo, é o porquê você fumava, sabendo que seu pai faleceu de câncer em decorrencia do uso contínuo do cigarro e você, com seus 18 anos, ficou desolado de perdê-lo após vê-lo sofrer por tanto tempo, sem que você pudesse fazer nada. O tio tinha só 47 anos.

Eu planejava chamar você de canto e conversar sobre isso.

Seu filho tem apenas 3 anos. Será que você não imaginava que a história poderia se repetir e você partiria jovem, no inicio da vida adulta do seu filho e ele sofreria tanto quanto você sofreu?

Mas a vida é sarcástica de mais para permitir uma reprise como esta.

Você se foi antes que isso acontecesse. Não que a dor seja ser menor, na verdade, creio que inclusive isso a torna muito pior. Mas já foi, é irreversível.

Outra coisa que me entristece é como permitimos que o corre-corre da vida nos afastasse. Com tanta coisas na cabeça, não nos falavamos tanto como quando éramos crianças e vivíamos na casa dos pais um do outro. Ainda assim conversavamos pela internet de vez enquando e ríamos.

Neste último mês estávamos planejando de nos encontrar para jogarmos videogame e apresentar-nos nossas esposas. Eu estava animado e apenas esperando a minha escala no trabalho sair para lhe falar em qual domingo iríamos nos ver.

Minha escala saiu e você se foi alguns dias depois.

Eu fico remoendo os últimos dois ou três anos que não nos vimos pessoalmente e calculando que foram em torno de no minímo 800 dias... será que em 800 dias não tivemos UMA oportunidade de nos ver?

A resposta é óbvia: Sim, tivemos.

Fomos dois idiotas de permitir que as desculpas esfarrapadas postergassem nosso reencontro.

Me dói o fato de que você jamais pôde conhecer os países que você sonhava ir: Estados Unidos e Canadá.

Me dói o fato de que você se foi justo no seu aniversário de casamento e no aniversário da sua esposa.

Me dói o fato de que você deixou um filho de apenas 3 anos que vai sentir sua falta o resto da vida. Além de sua mãe e seu irmão mais velho.

Me dói o fato de que não nos vimos uma última vez para que eu pudesse lhe abraçar e zoar com a sua cara por conta dos quilinhos a mais que você ganhou na quarentena. Eu tenho certeza que você me zoaria também, falaria do meu cabelo comprido (influência sua) e da barba falhada. Riria do fato d'eu ter feito uma gaiola enorme para um hamster, porque você não entenderia como um bichinho tão pequeno precisa de um espaço tão grande.

Me entristece o fato que você não conheceu a minha casa e eu a sua.

Por outro lado, além de chorar de saudades de você, eu também rio toda vez que lembro da nossa infância, das piadas, das brincadeiras, das coisas que você me ensinou, da alegria que eu sentia quando eu ficava sabendo que iria visitar você.

Sou muito grato por você ter me influenciado a gostar de videogame, estudar inglês, a gostar de vários estilos musicais, gostar de skate, bicicleta e outros esportes.

Eu sei que a gente já brigou, coisa de criança, mas eu não lembro quando, nem porquê.

De você, graças à Deus eu só tenho lembranças boas.

A vida é um sopro; a morte também. E eu sempre te amarei.

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Luto pelo meu primo, praticamente irmão, Raphael Sena.

Que a sua essência viva em mim e que eu possa continuar espalhando alegria como você fazia.

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Escrito em 30/11/2020

Pablo de Sena
Enviado por Pablo de Sena em 10/12/2020
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