ORGULHOSA, ABENÇOADA E HONRADA!!!

QUASE NINGUÉM IRÁ LER, POIS É TEXTÃO, MAS VALEU O DESABAFO E REFLEXÃO!!!

Hoje eu fui a uma festa de família. Literalmente!!! Era a festa de aniversário de 80 anos do irmão do meu avô. Minha falecida avó tinha mais 9 irmãos. Meu falecido avó, mais 8. Da parte da minha avó todos morreram. Da parte do meu avô restaram 2 irmãs e 1 irmão. Este é quem comemorou seus 80 anos de vida.

Pois bem, eu estava muito ansiosa quanto a esta festa. Um monte de primos da minha mãe que eu nem conhecia ou que eu era criança e não me lembrava. Todos sabiam que minha mãe tinha criado um "menino". Como chegar à festa e lidar com possíveis olhares curiosos, acusadores, preconceituosos, condenatórios?

Confesso que me preparei para o pior! Uma verdadeira catástrofe!

Medo de ouvir os habituais xingamentos, que nós TT (Travestis e Transexuais) ouvimos no nosso dia a dia: "viadinho", "bichinha", "O TravecO" etc.

Ou ouvir algo bem pior...

- Sua mãe pegou você com seis meses de idade, cuidou, educou, amou e aí cresce e vira "Isso"? Seria melhor ter devolvido você para sua mãe biológica ou orfanato ou deixado morrer (pois minha saúde era muito frágil e eu muito doente, sem os extremos cuidados de minha mãe não teria sobrevivido). Ela se sacrificou para ter um filhO e você ingratO faz isso com ela, vira "Isso"!!!

Também me preocupei pelo choque de realidade: social e cultural.

Os parentes mais velhos são idosos. Alguns nascidos antes da Segunda Guerra Mundial, outros na Guerra Fria ou Ditadura. Enfim, tirando "eu", não sei de outra pessoa T na família.

Como explicar para uma tia da minha mãe ou primo que o "menino" que ela tinha criado agora é uma "menina"?

Pessoas que nunca ouviram falar sobre transexualidade. Pessoas que não sabem a diferença entre sexo biológico, identidade de gênero, orientação sexual, expressão de gênero. Pessoas que nunca ouviram falar de Teoria Queer, Perfomatividade, Ato Performático ou que gênero é uma construção histórica, social, política, linguística e com uma forte carga, uma forte influência do patriarcado, machista, misógino, cisheteronomativo.

Gênero é uma imposição normativa!!!

Pois bem, como chegar até o irmão do meu avô usando maquiagem, batom e brincos?

Optei por um macacão escuro e uma sapatilha preta para não chocar chegando de salto alto e vestido curto.

E ele me tratou NORMALMENTE!!!

Cumprimentei o "Tio". Ele me chamou de "filha" e continuou a cumprimentar os outros. Não me ignorou e nem ficou com os olhos grudados em mim como se eu fosse uma atração de zoológico ou de circo atrás da jaula.

A irmã dele é mais velha e evangélica. E ela me tratou no feminino, me chamou de "filha" etc.

Uma tia da minha mãe, que fora casada com um irmão da minha avó, ficou meio confusa. Ela se lembrava daquele "menino" que ela conheceu a décadas...

Minha mãe explicou que sou eu e com uma linguagem simples que o "Fulano" agora é "Frida", que "virou" mulher.

Muitos vão me condenar.

Dirão: "Você já era mulher! Você nasceu mulher" Ninguém vira nada ou sofre metamorfose. Você não é Pokemon, Power Ranger ou lagarta que vira borboleta!

Sei de tudo isto!

Mas nem sempre dá para sair teorizando e querendo dar uma lição de Teoria Queer, Performatividade, Cisheteronormatividade.

As pessoas podem não entender por uma questão cultural (é algo meio filosófico que a pessoa precisa ter um embasamento). tanto temporal (choque de gerações) quanto teórico-conceitual (choque de ideologias).

Muitas vezes queremos dar respostas técnicas demais ou nos explicar demais e botamos os pés pelas mãos.

Sabe aquele lance que a criança pergunta sobre como ela foi gerada?

Você não precisa mentir que viemos da cegonha ou da sementinha que foi plantada dentro da mãe, mas não precisa dizer que houve uma relação sexual e explicar em detalhes como é uma relação sexual.

Para a criança vai bastar saber que os pais namoraram e fizeram-nas. O mesmo ocorre com essas explicações. Apesar de saber que não virei nada e etc, é com uma linguagem mais direta e simples que se chega a uma resposta esclarecedora e satisfatória.

E, muitas vezes, respostas diretas e simples são completamente satisfatórias...

- "Fulano" agora é "Frida"? "ElA" agora é FELIZ?

- (Resposta: É SIM!!!).

- Então é isso que importa!!!"

Simples assim!!!

Passei a noite alerta, naquele estado de defensiva, pronta para ouvir piadinhas, sussurros, chacotas, olhares condenatórios.

E...

Nada observei...

Pode ser que falem depois, em suas respectivas casas, sem estarem na minha frente, mas, a educação, o respeito e a civilidade prevaleceram e não fizeram pessoalmente.

Apesar de eu ter estado alerta, nada observei...

Minha tia e meu primo ainda me chamavam por artigos, pronomes e nome de registro masculinos. Minhas primas, não. Faltavam apenas os dois - minha tia e meu primo. E... Para a minha grata surpresa, desde a hora em que chegaram até o momento em que foram embora, os artigos, pronomes foram usados no feminino e meu nome social (meu nome real, quem sou de verdade) também!!!

Não impus...

Apenas esperei...

Me assumi "Frida" em 2011. Faz 6 anos. Poderia ter brigado com eles cada vez que nesses 6 anos "desrespeitaram" os artigos e pronomes ao se referirem a mim, além do nome social. Mas, na verdade, não era "desrespeitar". Eles precisavam de um tempo de adaptação, Passaram mais de 2 décadas se referindo a mim com artigos e pronomes masculinos e me chamando pelo nome de batismo, o masculino. Como eu posso querer que me assuma como mulher transexual e do dia para a noite passem a me chamar de "Frida" e passem a usar "a", "ela", "dela", "sua"?

Dei tempo ao tempo...

E de tanto ouvirem as outras pessoas me chamando com os artigos e pronomes da corretos e me chamando de "Frida", aprenderam por osmose. Absorverem aos poucos e foi um processo natural.

Sei o quanto sou abençoada por ter uma família assim!!!

Sei que INFELIZMENTE sou a EXCEÇÃO!!!

Pessoas T são espancadas dentro de casa por não agirem de acordo com as imposições de gênero condizentes com seus respectivos sexos biológicos.

Pessoas T são estupradas como forma de punição ou correção (estupros corretivos).

Pessoas T são humilhadas, torturadas (física e psicologicamente) nas escolas, que são berçários de dominação e disseminação machistas, patriarcais e cisheteronormativas. Essas pessoas T são EXPULSAS das escolas que não as respeitam, as agridem e forçam suas saídas...

Pessoas T são expulsas de casa pelas famílias.

Pessoas T vão parar nas ruas sem nem terem acabado o Ensino Fundamental.

Atualmente, arrumar um emprego já é complicado para alguém que tenha uma graduação e esteja dentro dos padrões exigidos pela sociedade. Imagine alguém que mal terminou o Ensino Fundamental e tem seu exterior não condizendo com seu sexo biológico?

Você daria emprego para uma mulher T ser vendedora em uma loja de calçados? Mesmo que desse... Os clientes, ao chegarem à loja e perceberem que se trata de uma mulher T escolheriam ser atendidos por ela mesma ou optariam e prefeririam uma vendedora cisgênera?

Você daria emprego para uma recepcionista T? Os clientes da sua clínica, ou consultório ou escritório poderiam, mais uma vez, optarem por outra atendente ou, ainda, até mudarem de clínica, consultório ou escritório que não tenha uma recepcionista T.

Para a nossa sociedade, pessoas T só podem trabalhar com o mercado da beleza (serem cabeleireiras, manicures, pedicures e maquiadoras) ou com o mercado da prostituição.

Para a nossa sociedade, pessoas T são doentes; contagiosas; cancerígenas; aberrações; sub-humanas; criaturas marginais (que só podem habitar locais específicos, regiamente demarcados e delimitados); criaturas da noite (como vampiras, por só habitarem as noites, as madrugadas).

E nas ruas sujeitas à violência: às tentações de álcool e drogas.

Como resistir quando a oferta é tão abundante?

Como resistir se é uma forma de anestesiar, fugir daquela realidade?

Como dar amor, quando só lhes deram e lhes dão intolerância, ódio?

Como serem diferentes quando só lhes deram aquilo e só assim elas sabem agir, pois é o único referencial delas?

Caso resistam a tudo isto, são mortas prematuramente por volta dos 30 anos. Enquanto a média de vida da população brasileira cisgênera é de 70, 75 anos.

Pessoas T têm expectativas de vida com menos da metade de anos se comparadas com as pessoas cisgêneras.

Pessoas T são assassinadas com requintes de crueldade: tiros, armas brancas, linchamento.

Não se apunhala uma vez, mas sim, dezenas de vezes.

Não se atira uma vez, mas sim, esvazia todo o cartucho de balas na pessoa T.

Não batem pouco, mas sim, quebram ossos dos braços, pernas, bacia, costelas.

Pedradas.

Assassinatos usando pedras para esmagar os crânios.

Pauladas.

Assassinatos usando paus para empalarem e serem enfiados pelos ânus até as bocas.

Mesmo após mortas, pessoas T têm seus corpos vilipendiados,

1 LGBTT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais) morre a cada 25 horas.

Até quando vamos fingir não vermos (apenas no ano passado) 142 homicídios, 47 tentativas de homicídio, 52 violações de Direitos Humanos contra a população Trans do Brasil?

Abençoada sou, pois, enquanto pais expulsam seus filhos biológicos para fora de suas casas, renegam seus filhos, a minha MÃE me aceita, me acolhe, me protege e me ama INCONDICIONALMENTE!!!

Ao invés de me renegar ou dizer que preferia não ter me criado, ELA/MinhaMãe me adotou legalmente após 30 anos!!!

E, hoje, mais uma vez tive a prova de que sou INFINITAMENTE ABENÇOADA, pois fui acolhida, respeitada por toda a família DELA que agora também é (e SEMPRE foi) minha família LEGALMENTE!!!

Tanto a parte da minha avó (os PASCIOs) quanto a parte do meu avô (os MONTEIROs) me respeitam e me acolhem!!!

Me sinto ORGULHOSA, ABENÇOADA e HONRADA em fazer parte dessas duas famílias de descendentes de italianos e espanhóis!!!

Me sinto ORGULHOSA, ABENÇOADA e HONRADA em SER uma: PASCIO MONTEIRO!!!

Frida Pascio Monteiro
Enviado por Frida Pascio Monteiro em 12/03/2017
Reeditado em 15/06/2017
Código do texto: T5938299
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