NEM LEIA

Diz-se que falar do problema é uma forma de ameniza-lo. Então falo sozinho por meio de monólogos cansativos chamados poesia. O problema é massivo e conhecido, sempre paira como uma nuvem nefasta e selvagem e como toda naja selvagem, um dia dá o bote. Depois de um lindo dia, e produtivo e interessante e estressante, segue-se outro dia escuro e cinza e melancólico e pasmo e chato e blasé, mesmo que seja um belo dia, é sempre blasé. A naja começa tragar sangue no seu cálice. As cenas do cotidiano parecem sempre as mesmas como se tivéssemos que fazer a mesma mecânica eternamente e sem cessar por um momento, as cenas perdem cor e vez ou outra enxergamos algo colorido, mas bem raro, como na Lista de Schindler, um vermelho ao fundo numa criança que é o símbolo de talvez esperança mas ao mesmo tempo efêmera e o vermelho esquecido passageiro pra nos lembrar que o amor há de passar ainda outra vez, a cena acaba e então nossas encenações tornam a ser as mesmas de sempre por algum motivo que sabe-se lá porque demônios isso ocorre, sabe-se lá porque diabos. Acordamos cedo e vem o fantasma, acordamos tarde lá vem o fantasma, acordamos em outro país e lá vem o dente da naja como a consciência mórbida de Memórias de Um Subsolo que atormenta e debilita e como um soco de um Ciclope e como uma sangue-suga de energia vital e como um parasita que se instala e só é percebido quando o dano está totalizado e como a malencolia de Lori no seu Livro dos Prazeres e como uma secreta chave da distopia da realidade Berkeleyana e como a solidão de Julieta em "Julieta" e como a tortura interna de Werther em sua insanidade e loucura e desespero e suicídio e como a tabacaria de Fernando Pessoa e como a Vanitas refletida na consciência de Hamlet em seus enormes monólogos pré morte e como a poesia ultra minimalista/reslista de Bukowski e como Fantasma do Meio Dia, e como eles, me vou, e como eles, tantos outros... Me sinto como O Grito de Edvard Munch de 1893, feito 100 anos antes que eu pudesse nascer mas ele já sabia exatamente o que sinto: o quão perturbador é simplesmente existir e o quão delirante é viver e o quão estranho é nascer e o quão necessário é gritar e o quão quão quão necessário é ser perturbado como um copo d'agua perturba-se e adapta-se e se liquefaz durante um terremoto. O dia alegre segue-se à horas de auto-enganação para Ivan Ilitch, para mim, segue-se... segue numa campina florida de sabor amargo ao conhecer EU mesmo e, tão pior, conhecer o mundo... segue no ritmo entoado pelo relógio de boca de caverna demoníaca pronto para dragar almas perdidas na neve congelante abaixo do sol do dia...

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