Continuem a cantar

Estou completamente perdido. Alguma coisa aconteceu desde que nasci, cresci e fiquei grande, mas ninguém fez o favor de me contar. Pai, mãe, amigos, o que foi que fizeram com as canções de ninar?

Rebobinemos um pouco o filme. Na época em que locar fitas ainda era uma prática comum, os pais costumavam cantarolar músicas pseudo-infantis para seus filhos. Por que pararam? Quem foi o abestalhado que resolveu apresentar aos pequenos o sertanejo, o funk, o axé e a MPB? Quanta tolice! Deixem que fiquem um pouquinho mais velhos!

É verdade que algumas das músicas precisavam ser adaptadas, mas nada que um bom raciocínio não resolvesse. Era só avisar aos papais e às mamães que bois azuis, amarelos, vermelhos, pretos ou de qualquer outra cor provocam medo ao fazerem careta. Era só informar-lhes que o nome do ursinho não é mais Pimpão, mas que ainda assim ele é um palhaço do circo que é um pedaço do nosso coração.

No tempo em que as pessoas tinham o hábito de conversar e trocar conhecimentos, tínhamos, na ponta da língua, todos os ditados populares. Lembro-me do mais épico deles: “Quem canta os males espanta”. Caso ou acaso, tenho a impressão de que as cantigas que cantavam para mim são os arranjos que mais me acalmam. Imagine quão inconveniente seria recorrer a música “Baile de favela” num momento de pavor.

Apesar de serem as mais tranquilizadoras, o grande destaque das antigas músicas – coisa que poucas pessoas sabem – é que elas vêm com surpresinhas. A gente cresce e vai pegando aos pouquinhos as mensagens do mundo. Papai e mamãe não faziam ideia das grandes coisas que me ensinavam, mas hoje eu sei que aquela rua de que tanto falavam é a minha vida, e ela é toda minha. Meu amor, saiba que eu quero, e vou mandar ladrilhar com pedrinhas de brilhante a rua todinha, só pra te ver passar. Pode vir de manhã, de dia, de noite ou mesmo de madrugada. Talvez estejamos aflitos ao nos encontrarmos e, por isso, cantaremos, mas não precisa ter medo. A rua de que falamos é só minha e por aqui nenhuma mocinha “vai voltar com a xota ardendo”.