A incrível história do sentido das coisas, ou da vida das coisas

As 4:51 da manhã não sabia mais o que fazer. O ventilador e a coberta, o escuro do quarto, o ser inquieto, comendo a ponta dos dedos como se fossem algum desafio a ser vencido - depois que arrancar esse pedacinho de pele eu paro - para nada. Infelizmente a noite continuará por mais algumas horas. Ouvindo o ranger do ventilador velho e empoeirado espalhar os ácaros pelo quarto e, de faz de conta, dissipar o bafo quente do quase-verão de Porto Alegre...E claro, acabar com todas as pontas soltas, da pele dos dedos. Os sonhos desmedidos, misturados com a imaginação fértil e a visita nostálgica (melancólica) das lembranças. - " Afinal, a vida era isso mesmo? "- Se perguntava toda a vez, em algum momento do dia (provavelmente, naqueles em que envesga os olhos e tenta compulsivamente vencer o desafio de arrancar todas as pontas soltas ,de pele ou unha, dos dedos), durante aqueles segundos de lucidez(?) que nos põe a pensar sobre o que realmente tem feito sentido, nas coisas da vida, ou na vida das coisas... Sim, porque as coisas, em sua vida, tinham vida. Quer dizer, as botas gastas e as camisas de cetim com pequenos furinhos queimados de brasa praticamente imperceptíveis. Um violão, um ventilador( dois, um velho que descartara, e um novo que comprara para dissipar com "toda fúria" o bafo e os ácaros do quarto durante o verão). Um computador velho, no qual passara madrugadas à esmo, digitando coisas sem valor naquelas páginas da web, perdidas em meio a milhões de endereços eletrônicos, flutuando na incrível rede invisível do mundo on-line. - Afinal, a vida era isso mesmo? - Se perguntava ao vestir todas aquelas coisas, ao idolatrar todas as inutilidades materiais que conquistara com o suor ou que tenha ganhado hereditariamente como herança. Afinal, era isso que importava no geral. Observar a moça ruiva da parada, vestindo sua camisa de cetim favorita e sua bota gasta. Bater( faze-las apanharem, para ser mais específico) nas cordas do violão, para quem sabe impressionar a moça de olhos claros no evento de rua. E, claro, deitar-se a noite com o ventilador e a coberta, logo após de ler ou escrever bobagens nos endereços eletrônicos dessas páginas flutuantes em redes invisíveis.

Pensava em todos os "afinais" da vida enquanto se auto-desafiava a acabar com as pontas soltas dos dedos para então finalmente poder pegar no sono ao som do vento e do ranger do ventilador. Mas as 5 horas da manhã, nada mais faz sentido. Embora há vida la fora, dentro do quarto nada parece mudar. Embora ande todos os quilômetros andáveis , com os amigos , sem destino algum, nada parece fazer sentido naquele momento de lucidez(?). Embora deixasse os cabelos rebeldes e fumasse maconha que nem louco, e bebesse aos sábados. Embora acordasse aos domingos bêbado na casa de algum amigo e, tocasse seu violão de forma agressiva e desritmada, ainda as coisas pareciam não fazer sentido naqueles instantes...

Lembrou-se, novamente, de todas as coisas que conquistara com o suor do trabalho que desempenhara naquele agência, vestindo o casaquinho azul-marinho e manga-curta com bordado no bolso da frente: "trabalhador"(sutilmente subliminar - escravo). E todas a horas investidas na conquista das heranças. E toda a vida que atribuiu às coisas. Ou a vida que empenhou para às coisas.

Amanhã, sem sentido algum, iria tomar café com leite e pão com manteiga para matar a fome, logo após de uma boa dose recheada de pele, carne e unha. Calçar as botas gastas e talvez (talvez, porque talvez não queira impressionar demais os meritocratas) vestir a camisa de cetim e andar por ai, que nem louco, criando historias sobre a incrível história do sentido das cousas, ou da vida das cousas.

Raul Nini
Enviado por Raul Nini em 06/12/2015
Reeditado em 10/12/2016
Código do texto: T5471502
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