A mercê da vida

O cinza do dia acordou-me, a sensação térmica despertou-me, a vontade era de ficar, continuar a dormir e sonhar. As vezes sonhos são melhores que a vida, que o dia- a- dia cheio e cansativo, o céu não costuma ser tão cinzento, o vento não move sequer uma folha caída. Levantei-me. Sorri. o café já frio, a TV em baixo volume. Ao fundo latidos na vizinhança. Bem longe o motor de um carro. Aquele cheiro único da manhã, as lembranças de um sonho e esperança de um hoje. Os ventos rodopiavam ao meu redor e me traziam a sensação valsante de sentir-se sozinho. Minha fadiga consumia-se por si só. Mais um dia, mais uma manhã. A mesma rotina, o cheiro rotineiro de ônibus deixou-me vertiginoso. Olhar para aqueles rostos todos os dias, tocar as mesmas texturas, observar a indecência. a promiscuidade do ser humano cansa-me, criaturas, porém sempre tão solícitas, tão amigáveis, tão felizes. O desejo de ser importante para alguém, mesmo que dentro da efemeridade de um instante. O desejo de ser reconhecido, de elevar meus talentos e mostrar que sou mais do que mostro, muito mais.O cansaço vem de sempre esconder-me nos bastidores sujos da vida, de ser o observador, e não o observado; de aceitar a condição de ficar sempre à mercê dos maiores, dos mais mostrados; de escrever poesias e não declamá-las, de ter tudo, enfim, mas não ter nada. A incerteza repetitiva das pessoas irrita-me, o cenário cinzento da cidade grande causa-me o desdém, as cores pouco vivas dos prédios faz com que eu me sinto sozinho, distanciado dos outros, como se tudo o que eu tivesse a oferecer não passasse de quimera. O mundo não são as pessoas que correm para pegar a condução, não são os sorrisos hipócritas, não é a troca de olhares entre duas pessoas num metrô. O mundo não é a modernidade, a tecnologia, nem a fama, nem o sucesso; o mundo são os sonhos, são as valsas, é o universo paralelo em que eu vivo e conjeturo e produzo o meu enredo, mesmo que nefasto; mesmo que os sonhos assemelhem-se a genuínos pesadelos.