ONDE ESTÃO AS FLORES?     

     O germe interior que nos habita alimenta-se da luz que a tudo ilumina, configurando alegorias nunca verdadeiras a adentrarem, através dos olhos e da fértil imaginação, nossa mente morbífica. Conhecedor da carnificina provocada por imagens que modificam, em infame clareza, a natureza inexata, preciso muitas vezes superar minhas mais tórridas resistências, e tentar manter alguma sanidade que, em si, já tem o condão da mentira de mim emanada à mesma luz que alimenta as lendas minhas, como às de todos que aceitam ver a ampla pintura, sob a fluorescência violadora. 

     Aprisionado aquém do sem-fim, e apesar de ainda não defrontar imprevisibilidades incompreensíveis nas ruelas incertas da fria matéria que a tudo compõe, ousei me descerebrar para, frustradamente,  contemplar um vasto onde não se possa pousar o espírito violador. A parede me foi imposta ao perceber que a própria consciência, ou inconsciência, da tentativa me condenava nos mesmos moldes estagnados de todos. Mesmo invocando todo o meu irrealizado não-ser, não me foi possível perceber algum aspecto essencial ou algum resíduo da abstrata veracidade de qualquer coisa clareada pelo pensar imposto.


     Da panorâmica da insensatez em tentar estar fora, percebi profundos abismos brancos, de onde emanavam feixes que deturpavam todos os pontos atingidos. Não há razoabilidades ou delineamentos exteriores quaisquer a tais abismos de luz que contemplei. Há exatidões falsas e vilipendiadoras de toda verdade desconhecida, concernentes à fome insaciável com que regurgitam suas insalubres claridades.  Confrontar tal paradoxo me deixou perdido entre minhas próprias veredas, como em todos os caminhos por mim já contemplados, floridos ou não. Foi-me ainda mais cruel não poder seguir além da efusão violadora originada de meu ser. Dele é que projeto e contamino todas as coisas vivas ou não; e também me eivo delas, ao me serpentear por entre dimensões, sob cuja superfície se encontram tantos outros declínios, com suas emanações oprobriosas.

     No extremo mais distante dos porta-luzes, semeadores de imagem, mais fracos se tornam seus efeitos. Sob a luz combalida tudo passa a ser questionado em meio a uma névoa espessa. Ainda assim, tais emanações alucinadas se compõem de sinfonias sedutoras e se utilizam de cores invisíveis para se cristalizarem em suas próprias naturezas estranhas e iluminarem incompreensões secretas com seus autorretratos pintados a ouro desconhecido. 

     Entretanto, não é possível nenhuma alquimia na essência existente onde tais luzes não tocam.  Sou, claro, também um despudorado emissor de falsas claridades.  Já me transbordei em pensamentos e em emoções tantas que me foi difícil senti-las por outros falseadores de verdades. Já orei tantas vezes a um Deus que só me servia para aliviar dores que logo percebi que se tratava de mais uma morta miragem emanada de mim. Já amei mulheres ofertando palavras tão doces, ou amargas, que seus arrotos se me tornaram inaudíveis. Já semeei esterilidades em terras férteis e já fertilizei desertos áridos. Já naveguei tantos mares que pensei poder dominá-los. E já voei tantos ares que pensei neles poder caminhar. Mas quanto mais me percebia vestido de cores e de sons magníficos – aos quais só podiam ver através da fresta de uma janela fechada – mais se desenhava meu ego, e menos capaz me sentia de perceber, através da superficialidade das fosforescentes emanações outras, seus próprios desertos, seus próprios mares, e seus próprios ares.

     Ainda caminho sem destino certo entre os mortos, portadores de melodias estridulantes, que teimam sussurrar a meus ouvidos o que outrora me foi negado; e entre vivos que ousam compor alguma singela e pura sinfonia – como que se desconhecido pudesse de mim ser o drama encenado – para algum sonho redentor, num estar perene ou num porvir incontrito. Imperceptíveis, não sabem que já não mais me permito muito esforço para sequer os contemplar além de suas imagens refletidas, ou para compreender palavras que, à contravenção de seus próprios anseios, são disparadas como partes sobressalentes de seus seres, deixando invisíveis aspectos sombreados e negados na obviedade dos vômitos. 

     Ao olhar para trás, incapaz de enterrar os defuntos, não mais me alento, nem me abrigo aos tentadores leitos nupciais, nos quais degustei flores de todas as estações, com suas singelezas e seus espinhos chocando-se em minha couraça fria. Há nessas imagens passadas, que já não me dizem respeito, embora eu teime ainda delas beber um pouco do insípido vinho, um tom acinzentado, com cheiro de cinzas molhadas de chuvas a cair por toda parte, de todo tempo e de todo espaço atingidos por minhas falsas concepções. Qualquer sentimento – adubo estéril das mentes insondadas, travestidas de projeções para fora de si – ocupava-se menos de vivências falsas do que de vidências irreais, ambas condenadas a quedas fatais.  Foi exatamente quando ousei colocar anseios inatingíveis, ao baile dos ventos de terreiros estranhos, que pensei amar ou odiar sempiternamente, e que mais me quedei ao devotar resistências a futilidades de existências, baseadas em palavras que mais pareciam vir de um palco, onde atores se apresentavam em grandes atuações, personalizando-se de tantas formas que se me tornou impossível, como se já não o fosse, captar alguma essência qualquer.

     Paradoxalmente, enquanto mortos teimam sussurrar, inaudivelmente,  o que nunca foram ou ofertaram, os vivos se mortificam, sem a chance do silêncio que os poderia manter menos insóbrios. Nuvens desdenham acima, rasgando o horizonte e escondendo um sol que não poderia aliviar mais que um frio superficial.  Nas profundezas, há nevasca e congelamento. Talvez tenha perdido a capacidade de ver contornos, mesmo aprisionados à vã visão, em caminhos que trilho. Confundem-me tantas luzes e suas realidades omitidas. E as flores dos pomares, apesar de seus magníficos olhares ao céu, não são mais capazes de se dizerem em algum leito esplêndido e confiável ao sono insentido que anseio.

     Mais que todos, regurgito o falso clarão do abismo meu. Minhas atuações se dão sob cortinas cerradas e são ainda mais inglórias, diante dos que buscam o olhar da natureza modificada pela luz, sem se darem conta de que sou apenas contornos distorcidos do que podem imaginar. Ao abrir das cortinhas, contemplam a morte em correntes de lava que fazem evaporar em dor e angústia seus ousados sonhos irreais.

     Como podemos ser tão mortíferos com a natureza real, subjugada com nossas visões aprisionadas em nossas próprias derivas? Como roubamos das infinitas possibilidades uma ou outra que nos apraz ou nos incontenta?  Como podemos nos dar o poder absoluto de escolha sob a luz ilusória difundida de nós mesmos? Como ainda não conseguimos compreender que, quanto mais aviltamos verdades desconhecidas, mais construímos condenadas alucinações?

     Deveria eu temer dizer que desconheço o sol que me queima ou o sombreado que me alivia? Deveria eu temer usufruir insombriedades crucificadas em lágrimas ou em sorrisos de ignomínias flores dos bosques que incompreendo? Deveria eu me poupar das fictícias palavras que não se sustentam além dos parâmetros fatais de onde se originam?  

     Pudera-me ser possível.  Em breve cochilo, posto-me também a sonhar com pomares à luz minha e às luzes conflitantes todas, em aviltamentos mútuos de autenticidades quaisquer. Andarei nas asas de falsos ventos. Navegarei entre as ondas de falsos mares. Contemplarei todas as cores e sentirei todos os cheiros de toda parte da tensão violadora. Contornarei todos os belos matizes da natureza forjada minha e de todos, sob um poder de escolha que não nos cabe, senão nos limites enxovedos aos quais nos ligamos.

     Entrarei e me sentarei onde o tempo e o espaço não podem me mostrar detalhes quaisquer além de nossas criações sedimentadas na danação. No relaxamento, ouvirei acordes surdos que flutuam sob dizeres profanos. E me apressarei, pois o sono é breve. E comigo se consolidarão, em santuários ou em infernos figurados, todas as demais anomalias, bem aquém da ilimitada veracidade existente além de nossa vã compreensão, de nossos abismos egocêntricos, e da verdadeira realidade aprisionada no ponto exato onde não mais podemos figurar sob luzes violadoras.

     Espírito flutuante em fugacidades. Vomito o ousado olhar fracassado para além de tudo que nos seja razoavelmente compreendido. Imagino-me – tentem colocar minha imaginação além das flutuações emitidas da luz de vossas mentes. Que vedes? – a brincar numa espaçosa varanda. A ponte feita me retorna a remotos. Jogo pife-pafe e bolinha-de-gude. Minha mãe chama para o almoço que me tira o canto mágico. Mas é também mágica a voz da ressurreição (ela já não dorme mais) que ressoa a meu ouvido. Algo me alivia um pouco. 

     Mas só um pouco. O sono que avilta a verdadeira realidade é deveras breve. 

     E assim é que nenhum comportamento ou pensar humano compromete a inverdade das imagens sob a luz violadora. Todas as experiências vividas ou fantasiadas, todas as atividades oníricas conscientes ou não, todas as crenças invocadas para nossos próprios alívios e redenções, todos os amores amaldiçoados contidos nos sorrisos dos lábios que os proferem, todos os rancores trancafiados em nossos recantos inacessíveis, todas as escolhas pseudorrealizadas, e tudo o mais que há ou possa haver, em qualquer hipótese, configuram atuações de palco em nossas mentes, iluminadas tão somente com nossa própria e repugnante emanação.  

     Péricles Alves de Oliveira
 
Péricles Alves de Oliveira (Thor Menkent)
Enviado por Péricles Alves de Oliveira (Thor Menkent) em 10/02/2013
Reeditado em 10/02/2013
Código do texto: T4132989
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