ONTEM, DO VERBO "SER"
 
     Ontem brinquei de carrinho num tapete quadriculado, que ficava na sala de casa. Cruzava avenidas e voava por cima de muros a alta velocidade, sempre menor que o pensamento próximo já também tresposto nos planos estranhos.
     
     Ontem, joguei queimada com as meninas, belas e dóceis. Não queria jogar queimada. Quiçá uma ou outra perceberam a intenção mascarada de apenas estar próximo numa inocência que nunca houve.

     Ontem tirei nota ruim em Matemática. Tomei ralha. Uma correia foi arrancada de uma cintura. Um aprendizado que nunca se aprende na mente que se colocava fora dali, contendo a dor do corpo.

     Ontem amei alguém que me traiu. Ontem traí alguém que me amou. Ontem me casei e me separei. Ontem fui à roça, sem ter ido. Ontem minha mãe viajou. Ontem um velho chorou como o menino em quem batia.

     Ontem ela partiu. Ontem ela voltou.

     Ontem nasceu um Universo. Ontem morreu outro. Ontem alguém ousou violar algumas mentes e tocou o mundo. Ontem quem tocou o mundo sucumbiu nos próprios pensares.

     Ontem, alguém nascerá.

     Ontem, alguém morrerá.

     Somente ontem alguém retornará. Ontem alguém partirá novamente. Ontem perecerão todos e todas as dores.

     Ontem alguém conheceu um velho que escreveu sobre logradouros de uma cidade, só tendo se mudado para lá em maior idade. Ontem alguém, incapaz, sonhou logradouros e foi a outro homem, que morou lá criança, perguntar como era, por não poder ter de quem escreveu a vivência, senão contada por outros. Ontem alguém enganou, em míseras obras, a uma ignóbil, vomitando ter escrito 12 livros, que não passam de cartilhas rezadas.

     Ontem alguém disse me amar. Ontem, ao mesmo tempo, disse amar a outros.

     Ontem eu disse que amava alguém. Ontem eu disse, ao mesmo tempo, que amava a tantas.

     Ontem fui enganado, mentido e traído.

     Ontem enganei, menti e traí.

     Ontem ofendi uma alma e salvei outra.

     Ontem escrevo isso, meio louco, meio alienado.

     Sim, ontem!

     Ontem enganaram o Universo e inventaram o tempo que não existe mergulhando os vãos filósofos em questões temporais idiotas.

     Ontem, com a invenção do tempo humano, criaram imagens. Tantas que se perderam.

     Ontem, com a falsa idéia de tempo, Heisinger falou do “vir a ser” e colaborou para o “não vir a ser” de milhões. Ontem alguém sossoprou aos ouvidos de Heisinger sobre não haver o “vir a ser”, e sim sobre o “não vir a ser”, vilipendiado à custa da força e da loucura. Ontem Heisinger ajudou a impor limite ao “não vir a ser” de milhões. Ontem ele acordou do sono.

     Ontem, Jean Paul falou sobre “tudo ser fruto de escolhas”. Ontem Jean Paul não foi estuprado. Ontem Jean Paull poderia falar na hora em que lhe comecem o cu à força. Ontem Jean Paul defendeu Heisinger. Ontem Jean Paul não estava entre as vítimas que Heisinger ajudou a condenar, para fazer uma escolha qualquer.

     Ontem alguém teve direito a escolhas. Ontem as escolhas foram tiradas de alguém.
Ontem alguém pôde sonhar um “vir a ser”. Ontem alguém foi privado de qualquer “vir a ser”.

     Ontem nasceu um louco: Friedrich. E disse: “humano, demasiado humano.” Ontem queria que o louco dissesse-me o que é humano.

     Ontem o “vir a ser” que de muitos não é. Ontem as “escolhas” que muitos não podem fazer. Ontem o “demasiado humano”, sem se saber o que seja isso.

     Ontem filosofaram “pra caramba”. Ontem, após o filosofarem sobre mentes em um belo quarto ou em uma ampla sala se prepararam para o espetáculo a ser oferecido ao mundo. Ontem, após cagarem com vermes invisíveis.

     Ontem. Sempre ontem.

     Ontem irei conhecer o Cosmo e alguma civilização longínqua. Ontem irei amar novamente. Ontem me tornarei de novo criança. Irei brincar. Irei me servir de saladas. Irei servir jantares. Ontem viajarei de trem. Ontem conhecerei a Deus.

     Ontem.

     Sempre ontem.

     Tudo ontem. Tudo por vir é ontem. Tudo do ser é ontem. O que não foi também foi ontem.

     Ontem... Tudo acabou com a cobertura de terra e os vermes a comer.

     Tudo foi ontem.

     Tudo é ontem.

     Tudo será ontem.

     Sempre ontem.

     Péricles Alves de Oliveira
 
Péricles Alves de Oliveira (Thor Menkent)
Enviado por Péricles Alves de Oliveira (Thor Menkent) em 14/10/2012
Reeditado em 14/10/2012
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