DEVANEIO DE UM INCURÁVEL SONHADOR

Não vivo um dia vivo sem que do anterior carregue lembranças. Sou, por assim dizer, como um baú que, se aberto, se mostrará tomado de infinitos fragmentos; como um quebra-cabeças, e, talvez, quem sabe, ao se tentar juntar determinadas peças a imagem formada seja de paisagem ou tempestade. Não sou, por natureza e construção filosófica, um ser tendencioso ao isolamento, ou mesmo misantropo. Sou, ao contrário, completamente adepto do encontro, da reunião, do estar em coletivo. Mas, humano que sou, não poderia deixar de reconhecer, sob pena de me parecer um envolucro mal elaborado, que tenho necessidade do silêncio. É no silêncio que me ouço, é nesse estado, só a mim consentido e cultivado, que me olho e me aponto o dedo. Não sou, como qualquer ser humano, detentor de nenhuma verdade (só a ideia de querer possuí-la, me dá náuseas!), porém, uma vez que assim penso e nessa vida caminho, não negarei que todos os dias se constroem verdades; e é nesse emaranhado de infinitas construções, e com elas a necessidade de se adaptar, que recorro ao silêncio. Recorro a esse caminho, não como fuga ou mesmo, numa vã tentativa de se apartar, mas, a busca por esse momento, precioso momento, me permite tentar "ler" as coisas a minha volta, pois, como já disse, não tenho tendência à misantropia. Sou, por assim dizer, egoisticamente, um amante da humanidade; um altruísta.

Também pode acontecer o contrário: que do baú aberto surja um outro mundo; um mundo onde se predominam os campos verdes, a Igualdade na sua mais elementar demonstração, um mundo onde as diferenças de classe, sexo, cor, religião (aliás, nesse mundo, a religião seria desnecessária) não precisassem de leis para serem garantidas; um mundo onde até a política perderia sua função, pois, num mundo desses, os interesses seriam todos igualmente satisfeitos, e a tacanha ganância seria apenas uma palavra. E, talvez, uma vez aberto o baú, e já sendo uma peça pública, ou de museu, talvez, quem sabe, ao virem-no numa exposição, como "as relíquias de um incurável sonhador ", os visitantes resolvam abrir os seus, porque sei, todos têm o seu; e é nessa possibilidade de afinidades que nos tornamos incuráveis sonhadores. E de volta ao ponto de partida, ou seja, que mesmo que me depare com um novo dia, não posso, por respeito ao tempo, deixar de me lembrar do que fora o dia anterior e outros mais. Pois, ao não me reportar, ainda que como fragmentos constituintes do meu baú, aos eventos pretéritos, estarei, sob pena de assassinar a história e todos meus antepassados, bravos lutadores que me honram dessa herança, não posso me apegar ao esquecimento. É com essa certeza que reconheço meu baú como um elemento necessário para minha existência, pois, uma vez que me comprazo da companhia e dos sentimentos humanos, sou necessariamente deles composto. Como já disse, não sou misantropo, e é justamento por ter essa certeza que me deparo com frustrações e muitos sonhos. Pensemos nisso.