DiAtípico

Windsor for the Derby - Melody of a Fallen Tree

Maior pagodão na porta do boteco logo ali. Estou sentado numa cadeira de balanço e no primeiro plano tem essa minha meia encardida; em segundo tem a cadela linda do vizinho da frente e em terceiro um céu azul que não pertence a São Paulo, sarapintado por uns pontinhos pretos - grupos de urubus planando e volteando e me matando de inveja.

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Mt. Egypt - Can You Feel The Wind?

Acabei de ser acordado de um cochilo com a porta sendo escancarada. Abri o olho e a vi tirando uma calça preta e colocando um short jeans pra ir comprar berinjela na feira. Mulher é cheia de onda, de mistério... Do nada ela deitou em cima das minhas costas e falou que me ama e vazou porta afora. Agora fico aqui olhando o teto e tentando compreender o que isso significa. Estamos - indiretamente - juntos há seis anos e essa foi a primeira vez que ela me falou isso.

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The Jealous Sound - Hope for Us

Tem um pinheiro do meu lado esquerdo. Quer dizer, parece um pinheiro, apesar da aparência dele não ser nada conífera. Logo acima de mim tem um fio que é usado como varal e ele é azul como o céu e eu só consigo vê-lo, acho, porque de baixo pra cima ele fica preto por causa da iluminação. Na folha reciclada deste caderno tem as sombras das folhas de uma árvore que tem do meu lado direito. Quer, dizer, não é bem uma árvore; ela tem três troncos da finura do meu antebraço entrelaçados e não parece passar dos dois metros e meio de altura - e as folhas são ora vermelhas, ora verdes. Eu não entendo a romaria destas formigas por toda a extensão do varal... Porque uma ponta dele é no pinheiro e a outra é na parede azul da casa dos fundos. Deus não entra nessa - não como algo a ser mimado, pelo menos. Como Criador disso ele até entra. Esse calombo ainda figura na minha canela direita - skateboard é foda. E não me lembro da última vez que as minhas pernas ficaram expostas ao sol. Que feriado bom do caralho! Logo aqui na minha frente tem uma paredezinha de meio metro de altura, revestida por uma cerâmica branca que, por sua vez, é revestida com uns pedaços coloridos de vidro: azul, vermelho, verde, laranja, amarelo e a cor que mais prevalece é a da garrafa de cerveja - marrom? Tem uma coisa ali no rejunte que me chama a atenção! Uma plantinha, um galhozinho com cinco folhinhas, e isso me parece ser obra das formigas zelando pela manutenção da vida no Planeta. Eu facilmente imagino um afã de muitas horas, de muitas vidas de formigas só para que esta mutaçãozinha surgisse ali... Deu pra entender onde meu raciocínio quis chegar?

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Doves - Rise

Ela acabou de sair daqui. Veio e se esparramou no meu colo e tesourou a minha escrita. Mas ela pode - pensei nisso olhando suas tatuagens rumando na direção do pequeno.

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E esse céu? Sabe o que eu estou ouvindo enquanto escrevo? Fórmula Mágica da Paz! É a quarta vez seguida que ela toca, e é a quarta vez seguida que eu acho o Mano Brown do caralho! O pequeno veio aqui e, como sempre, arrancou um dos fones do meu ouvido, colocou no dele e não pareceu concordar com a minha opinião.

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Essa caneta além de ser gostosa de escrever é engraçada, porque tem um pedaço dela que é prateado e eu fico olhando o reflexo das linhas e do que já escrevi enquanto vou escrevendo.... Deve ser algo como dar marcha-à-ré e ficar olhando pra frente; ou ir em frente olhando no retrovisor. Ou um dejavu."É época de pipa e o céu tá cheio; quinze anos atrás eu tava ali no meio". Que houve com as crianças? Junho é época de pipa, hoje não vai chover, o vento está perfeito pra empinar pipa e eu só vejo os benditos urubus me inutilizando às leis da gravidade e meia dúzia de tecos de rabiola nos fios... Nunca mais vi grupinhos de cócoras jogando bolinha de gude ou furando tampa de garrafa pra passar a fieira, pra rodar aquele pião maneiro - eu nunca mais vi pião algum. Nunca mais ninguém correu depois de apertar campainha. Ou trepou em muro. Ou essas crianças ficaram requintadas iguais àquelas que só arranham os joelhos no carpete do apartamento e bebem leite com pêra ou os tempos realmente mudaram - ou eu é que passo tempo demais entre as paredes do meu quarto e a porcaria da vida adulta.

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Os desgraçados estão voando cada vez mais baixo. Quinta vez que a música toca e isso significa que estou há quase uma hora escrevendo. Essa música me lembra tanta coisa, me faz lembrar tanta coisa, que não é de se admirar que eu reflita sobre meus status quo e ache minha vida uma grande merda inútil e desgostosa - ah, Albino, te imagino lendo a notícia sobre o suicida de 15 anos e me pergunto se não fora eu, ele, na ocasião da escrita de seu livro! Mas acabou a bateria do tocador coreano e sobrou a música brega do vizinho: "o nosso amor é lindo! Tão lindo! Nada pode ser mais lindo do que o nosso amoooor".

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The Killers - All These Things That I've Done

Ela foi tomar banho. Deitei com a barriga pra cima e peguei no sono. De novo acordei com a porta sendo escancarada. Deitei de lado e a vi desenrolando a toalha do corpo e também a toalha da cabeça. Estou deitado de lado vendo seu rosto contra a luz que entra no quarto filtrada pela cortina; luz daquele amarelo meio alaranjado ou meio avermelhado do pôr do sol. O secador trabalha enquanto alterno olhares entre as curvas de seu corpo, as fissuras da pouca roupa e seu olhar que aparenta ser altaneiro por causa do desenho das sobrancelhas. Sorri. Eu fecho os olhos. E a vida poderia ser sempre um feriado de quinta-feira com amor.

23/06/2011

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 10/07/2011
Código do texto: T3086706
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