Terraço Amargo

Aqui em cima eu me sinto protegido sabendo que a vida é um simples muro de meio metro – pula (d)ela quem quer.

Daqui de cima eu me sinto onisciente, vendo o mergulho do playboy na cobertura e a mendicância nos becos.

Aqui em cima eu sou intangível, altaneiro com meu copo de café, levando vento gelado nas canelas e dormitando no chão áspero, sabendo que não há problema da vida que a morte não resolva.

Por isto eu fico tranqüilo aqui em cima, olhando os pára-raios, com o pensamento de que se tudo de repente for demais pra mim, durante uma tempestade tropical de Verão, bastar-me-á abraçá-los todos.

E que se tudo for uma sucessão de melodramas e intrigas empreguiçantes durante o Outono, bastar-me-á cair daqui de cima como as folhas lindas e laranjas e mortas.

Os pássaros inexistem aqui em cima: só vejo ferro e fios se nidificando e formando enormes antenas e torres com tambores embaralhando as egoístas confusões deste imundo mundo mundano.

Aqui em cima eu como chocolate e me aprofundo no azul do céu, forçando um Nirvana a qualquer custo.

Enquanto um marido trai uma esposa.

Enquanto o Síndico da Massa Falida engendra o verme do suicida num pai de família.

Enquanto um velho de 90 anos preso a uma cadeira de rodas urina sangue no corredor apinhado de um hospital público.

Enquanto uma mãe pranteia o filho morto diante de uma cova aberta.

Enquanto uma jovem faz um aborto num banheiro de rodoviária.

Enquanto Anchorage desperta bela e fria.

E o trem descarrila em Barcelona. E um copo de chopp é preenchido em Copenhagen. Enquanto um Australiano é espancado num beco da Giudecca Veneziana.

E alguém desvia verba, compra um carro amarelo com nome de touro e paredes de madeira são lambidas pelo fogo oriundo de um curto-circuito de trambiques dos miseráveis.

Não há o que se fazer se eu quiser atentar contra a minha vida.

Haverá um ou dois dias de choramingos. De culpas. De dores. Mas o mundo continuará. Ninguém vale nada.

Daqui de cima eu vejo claramente, despido de toda e qualquer humildade: sete bilhões de quilos de dejetos mergulhando nas entranhas do Planeta. Para cada grama de dejeto, bilhões de organismos vivos vivendo como eu aqui em cima.

E há alguém no controle de tudo isso?

E cadê o porquê pra tudo isso?

Suspiro, sem resposta, como sempre, e não me jogo daqui de cima, e volto à automação dos dias; cãozinho com o rabo entre as pernas, acostumado com os chutes dos fantasmas das dúvidas.

30/05/2011 - 13h50m

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 30/05/2011
Reeditado em 01/06/2011
Código do texto: T3003524
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