Urina solta...

Tibebé digeriu mal aquela nossa mudança do povoado do Brumado para Pitangui em junho de 58. Chorava recorrentemente, temerosa dum descalhamento daquela ousada iniciativa. Chorava e rezava, frequentando a igreja matriz com muito mais assiduidade do que fazia na capelinha de São Gonçalo do Brumado. Eu, que chorara só no dia da mudança mantinha a frequência apenas dominical daquele preceito religioso.

Mas Tibebé havia vivido os últimos trinta e quatro anos de sua existência no pequenino e quase que excluvisamente operário Brumado, depois de lá chegar, egressa da Onça em 1924, acompanhando a depauperada família, de pais e vasta irmandade. E lá foi que encontraram emprego fixo na fábrica de tecidos e tinham todos suas vidas já ajustadas às rotinas locais.

Porquanto eu, estava ainda por completar oito anos e apenas iniciara o processo de alfabetização nas Escolas Reunidas José Lima Guimarães.

As preocupações de Tibebé, que pareciam inatas, dada a sua aflição diante das mais comezinhas coisas, estendiam-se agora a passíveis e possíveis desentendimentos na unidade fabril da sede, que era bem maior, e parecia empregar gente mais jovem, mais competitiva, além de mais exigentes chefias. E o medo de nada dar certo, ela já entrada nos cinquenta, é que a avassalava.

E seu apego e apelo à religião adensou-se, tornou-se obsessivo. Após a reza das vésperas, que ia mais ou menos enquanto duravam as transmissões da Voz do Brasil, Tibebé aferrava-se à reza individualizada, às contrições, às louvações e até às profecias. E enquanto a igreja duma vez se esvaziava, ela lá ia ficando indefinidamente.

O sacristão que tinha obrigações além das religiosas preveniu papai, que tomou providências de demover a mana a continuar no interior do templo. Relutante e chorosa, Tibebé continuou, contudo, com sua prática, feita agora do lado de fora, nas escadarias da matriz.

A graça entretanto, se arrancada ou alcançada, veio nos meses que se seguiram com o gradual desapego às práticas mais incisivas de adoração.

E uma manifestação do reenquadramento doméstico de Tibebé, de quem éramos vizinhos de cerca estava na carne de panela de que aparentemente só ela sabia até que ponto chegar. Outra, menos prosaica, estava na sua capacidade de voltar a rir das graças que aprontávamos na companhia delas que, além da carne muciça, valia também pela urina solta que eventualmente, se lhe escapava quando boa risada soltava.

Paulo Miranda
Enviado por Paulo Miranda em 16/11/2016
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