Memórias póstumas de um homem morto por uma latrina em queda livre - Capítulo 7

Capítulo 7 - A Lei da Serialidade

Saio do apartamento rumo ao trabalho na Companhia de Telemarketing. No corredor do andar onde eu morava, havia um rapaz distribuindo folhetos. O corredor é estreito e não há mais ninguém entre eu e ele, que estava colocando folhetos embaixo das portas dos apartamentos vizinhos. Portanto, não tenho como fugir. Durante anos, tive que lidar com distribuidores de folhetos nas ruas de Salvador e com isso aprendi a me esquivar. Todavia, eu desenvolvi meu talento para fugir apenas nas ruas, ao ar livre. Nunca precisei escapar deles dentro de lugares fechados.

- Bom dia! - ele me diz.

- Bom dia. - respondo, desanimado.

No folheto, um anúncio que fala sobre “renda extra”. Quando vejo isso escrito, penso logo: “é picaretagem”. Amassei e joguei o folheto fora.

Depois disso, é natural que eu conte como foi minha chegada ao trabalho. No entanto, prefiro contar ao leitor sobre algo peculiar que aconteceu. À noite, eu e Sofia fizemos as pazes e transamos de novo. Não, não é isso que é peculiar. Continue lendo e verá. Enfim, depois da cópula, mais uma vez discutimos sobre trabalho, Marias Gestoras, machismo etc. No outro dia, pela manhã, Sofia sai com a cara fechada e lá estava o cara dos folhetos, de novo!

- Bom dia! - ele me diz, com entusiasmo.

- Bom dia. - respondo.

À noite, o mesmo enredo da noite anterior: sexo, conversa etc. Na manhã seguinte, cara fechada, homem dos folhetos etc.

E foi isso por cinco dias seguidos. Perguntei a mim mesmo: “será que estou preso num loop?”.

No quarto dia, à noite, tentei mudar o enredo. Quis mudar de assunto, tentei falar sobre futebol. Porém, senti uma força de vontade no sentido contrário, ou seja, foi como se algo me forçasse a seguir o roteiro repetitivo. Cedi. Parecia que estava lutando contra uma força da natureza.

Encontrei a salvação no trabalho, cuja rotina ainda não contei ao leitor.

No dia seguinte à quarta noite, depois de mais uma vez topar com o entregador de folhetos, fui ao trabalho. Na hora do almoço, fui comer com meus colegas Flávio e Eric.

O primeiro estava na graduação de Biologia. Era um homem detalhista. Dê a ele um tijolo e ele dissecará esse objeto até os átomos. Lembro que escrevi um texto jornalístico para a faculdade e pedi a opinião dele. Flávio fez uma análise tão detalhada que ele chegou a dizer que “até as vírgulas deveriam ser jornalísticas”. Quer dizer, segundo ele, as vírgulas seriam regidas por leis jornalísticas. Perguntei por que essa obsessão pelos mínimos detalhes. Ele respondeu:

- Cara, eu sou biólogo, vou até as células.

Eric, diferentemente de Flávio, parecia curtir mais as ideias gerais. Não estava na faculdade. E dizia trabalhar apenas na Companhia de Telemarketing. Mas ele tinha uma moto cara. Andava sempre com dinheiro e corrente de prata e ouro. Nunca quis perguntar como ele arrumava tanta grana. Sobre meu texto jornalístico, ele disse:

- Entendi o texto. Isso é o que importa. Flávio e suas vírgulas idiotas que se f...!

Comentei com os dois que eu estava passando por sucessivos eventos idênticos em dias consecutivos. Nenhum dos dois acreditou nisso.

- É muita coincidência! - disse Eric.

- Falando em coincidência… - afirmou Flávio. - Outro dia vi um livro sobre isso na biblioteca da UFBA. Era algo sobre Lei da Serialidade.

Flávio pesquisou na internet. Havia um livro chamado “Das Gesetz der Serie” (A Lei da Serialidade), escrito por um biólogo chamado Paul Kemmerer (1880-1926). De acordo com essa obra, minha vida, a de Flávio, a de Eric e a de todo mundo estariam dentro de um “sistema” cuja característica fundamental era uma tendência que poderia provocar a repetição em série de vários eventos.

- Está me dizendo que há uma lei que está forçando a repetição dos mesmos eventos na minha vida? - perguntei.

- Essa Lei da Serialidade não tem corroboração científica. - respondeu Flávio.

- O que eu faço? - eu disse.

- Sei lá. Tenta mudar o roteiro. - respondeu Flávio.

- Já tentei. Não dá. Parece que algo me força a seguir o script.

- Isso é fácil de resolver. - disse Eric.

- Ah, é? Me diga como. - perguntei a Flávio.

- Eu vou te ajudar. - afirmou Eric.

- Como?

- Você vai ver.

Na saída do trabalho, e rumo à faculdade, descobri como Eric ia me ajudar. Na rua, um marginal me abordou e roubou meu celular. Fui à delegacia prestar queixa e levei quatro horas lá. Não fui para a aula. Não pude responder às chamadas de Sofia. Portanto, não houve nenhum encontro sexual e conversa. Cheguei em casa cansado. Fui dormir sozinho. Consegui, involuntariamente, mudar o enredo supostamente previsto.

No outro dia, Eric devolveu meu celular.

- Mas o quê? Era você!? - perguntei, pasmo.

- Eu disse que ia te ajudar, não disse? - ele respondeu.

Continua...

RoniPereira
Enviado por RoniPereira em 12/05/2024
Reeditado em 12/05/2024
Código do texto: T8061580
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