Diário de um chacareiro - II

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Jotaefe enterrou a novilha picada por cobra e o episódio ficou esquecido por algum tempo, apenas sobreviveu latejando no chacareiro uma curiosidade pontiaguda. Quando construiu a casa, nos primeiros dias do outono de 2011, marcou com o mestre-de-obra os vértices Norte e Sul e a posicionou de frente para o sol do equinócio. No solstício de verão de alguns dos anos seguintes, ele acordou cedo para apreciar o sol nascendo; gastava horas tentando adivinhar em qual cidade do litoral sudeste ele chegaria, se caminhasse em linha reta na direção do sol, saindo da sua varanda. Até que um dia concluiu e anunciou com estardalhaço que molharia os pés nas águas salgadas de São João da Barra, no norte Fluminense. E no de inverno, chegaria em Aracaju? Mesmo envolto naquelas elocubrações astronômico/geográficas acontecia de lhe alfinetar a questão: onde e com quem aquele gerente da Baixa Égua teria adquirido conhecimento e experiência no trato com a bovinocultura? Quando combinaram o aluguel do pasto, nem o chacareiro nem o Aliberto quiseram dizer de iníciop qual seria o valor, pois ambos sabiam no íntimo que o preço, qualquer que fosse ele, seria alto pra quem pagasse e baixo pra quem recebesse. Não se conheciam, o Jotaefe os apresentou. Otávio e Aliberto rapidamente se entrosaram, acabaram encontrando um equilíbrio que tanto atendeu a necessidade do Aliberto como retribuiu de maneira razoável a disponibilidade do chacareiro. Mais importante, fundou-se ali um relacionamento de respeito e consideração mútuos. A confiança e a abertura para o diálogo vieram com o tempo, conversas rápidas e superficiais foram aos poucos ganhando corpo: todos os dias 15 do mês, religiosamente, Aliberto telefonava ou mandava um áudio pelo WhatsApp combinando o melhor horário para o pagamento. Ele estava invariavelmente ocupado, nunca passava do portão da casa, sempre com pressa por causa disso ou daquilo. Numa dessas ocasiões, porém, quando ele chegou, encontrou o chacareiro na frente da casa, posicionando uma mesinha de bambu protegida do sol, atrás do tronco de um pé de jambo, para servir de suporte para sua caixa de Jataí. Nesse dia ele se deixou demorar um pouco mais, entrou, passou do Jambo e foi até um pequeno chafariz, ao lado do pé de jatobá. Já na lateral da casa, descendo o aterro sobre o qual a casa fora construída , o chacareiro mostrou com orgulho o pé de ylang-ylang. O gerente se divertiu ao saber sobre a fama de árvore afrodisíaca do ylang-ylang, e da razão de plantar “estrategicamente” ao lado da janela do seu quarto de dormir. Na volta, o Aliberto se interessou pelas abelhas do chacareiro e elogiou com ares de especialista a preocupação de mantê-las na sombra — já no portão de saída mencionou, entristecido, seu fracasso pessoal na criação de meliponas. Contou como, amargando essa frustração, encontrou alento trabalhando com inseminação artificial numa fazenda de gado leiteiro no município de Viçosa, em Minas Gerais. Pronto, a partir dessa ponta do novelo, puderam se conhecer melhor.

Aquele negócio de alugar o pasto caira como uma luva para o chacareiro. Algum tempo antes do chacareiro assumir a direção da chácara, o que na verdade foi um longo e tortuoso processo, seu irmão Orlandão liderava as ações, gerenciava um incipiente haras, os cavalos Árabe era sua paixão. O vizinho de cerca, do lado oposto ao Cel Edinaldo, era Seu Josias, um assessor do Senado Federal aposentado — ou em vias de se aposentar, nunca ficou muito claro e ele mesmo parecia sentir prazer no clima de mistério que havia. Ele criava cavalos Campolina, o que não impedia o Orlandão dizer de modo teatral quando acontecia dos dois se encontrarem, “Não tem ninguém em todo vale do São Bartolomeu que tenha cavalos mais bonitos do que o Seu Josias!” E ele devolvia na mesma moeda, enaltecendo o Orlandão e, indiretamente, vangloriando a si próprio, no mesmo tom teatral, “não tem ninguém em todo vale do São Bartolomeu que entenda mais de cavalo do que o Orlandão”, e se confraternizavam às gargalhadas. A raça Árabe é famosa por produzir cavalos rústicos, que se adaptam maravilhosamente bem às provas de “enduro”, um tipo de competição equestre que exige velocidade e capacidade de resistência. Orlandão, de espírito eminentemente competitivo. disputou alguns sempre acompanhado pelo Jotaefe, com o incentivo amoroso da esposa Ângela. Ele mesmo nunca obteve resultados muito animadores, mas certa vez um de seus animais, a égua Citabasque, chegou em segundo lugar conduzida pelo Jotaefe, que além de habilidoso tratador era excelente cavaleiro. Ele gostava de contar, entre relinchos de gargalhadas, sobre um enduro em que pararam pra lanchar. O sanduíche de mortadela não caiu nada bem no Orlandão… não conseguiam achar um banheiro até que encontraram um posto de gasolina com uma conveniência, mas que azar, o banheiro estava trancado. Não teve jeito de se segurar, passou o dia exalando um fedor que nem o cavalo aguentava. Disputaram outros enduros, sempre com muito entusiasmo, mas no curso do ano seguinte Ângela teve uns problemas de saúde, acabou internada, diagnosticada com câncer no pâncreas e faleceu em três meses. Orlandão ficou desconsolado e sem o incentivo da mulher, abandonou tudo, a casa, as baias, o galpão de feno, tudo, não quis mais saber dos cavalos. Dois anos depois, outro irmão, Omerindo, resolveu iniciar um empreendimento de plantar capim tífton e fazer feno pra vender para os diversos haras da região da Rota do Cavalo, no vale do Ribeirão Sobradinho. Contratou um engenheiro Agrônomo pra fazer um projeto de cultivo e pediu para o chacareiro tocar o negócio. O primeiro passo era preparar o solo, roçar a área, e passar trator com arado. O Gaúcho, tratorista que sempre fazia serviços naquelas redondezas, disse que antes de entrar com trator, seria bom colocar o gado pra pastejar e baixar o capim braquiária , para facilitar a operação — e não desperdiçar o alimento dos animais. Nessa época o chacareiro já tinha se desfeito das suas cabeças de gado, porém o Gaúcho lembrou do gerente de uma fazenda próxima dali que estava procurando um pasto para colocar umas 30 cabeças de gado Nelore. “O Jotaefe conhece ele, é boa gente, vou falar com ele, ele está precisando muito porque o dono do pasto onde está o gado pediu a área de volta”. Foi então que o chacareiro se adiantou e pediu ao Jotaefe que mandasse dizer ao Aliberto que eles tinham, e estavam dispostos alugar o pasto.

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Passadas algumas semanas, o capim braquiária estava mais baixo, o engenheiro agrônomo contratado avisou que o projeto estava finalizado e combinou com o Omerindo, que preveniu o Otávio, uma reunião para apresentá-lo. No dia combinado, porém, um incidente alterou completamente o rumo das coisas. Na época, o Jotaefe tinha um cachorro bravo que, tirando o dono, ninguém mais se atrevia a chegar perto. Nem a Cecília o cão respeitava. Enquanto esperava a hora da reunião, o chacareiro ficou no alpendre de casa beneficiando a colheita de açafrão do dia anterior. Omerindo chegou, deu duas buzinadinhas de cumprimento e seguiu para a casa dele, abaixo uns 70 metros à esquerda da estrada. Tavinho entrou em casa para lavar as mãos impregnadas de açafrão, mas percebeu que o Omerindo não entrou no portão de casa, seguiu mais 100 metros até a casa do Jotaefe. Mas o Jotaefe não estava em casa, tinha ido com a Cecília fazer compras no mercado. Quando saiu na varanda, estava trancando a porta, o chacareiro ficou surpreso ao ver o Omerindo passando de carro morro acima, indo embora. Achou estranho aquilo, mas se lembrou de Romanos 8:28, e se conformou.

Depois do almoço Otávio telefonou para o Omerindo querendo se inteirar das coisas e ficou sabendo que ele tinha sido atacado pelo cachorro, foi direto para o pronto-socorro, perdeu bastante sangue, ligou para o agrônomo cancelando a reunião. Como o Omerindo era a única pessoa a que o Jotaefe se julgava no dever de obedecer, não demorou três dias para ele dar sumiço no cão feroz. O agrônomo contratado, ninguém soube explicar porque, simplesmente desapareceu, sumiu do mapa, não atendeu mais o telefone, desistiu do projeto. O chacareiro propôs ao Omerindo uma alternativa, achou um especialista em pastagens, Danilo, ex aluno também do Colégio Agrícola. Novamente o plano não prosperou porque o projeto do Danilo, não deixava dúvidas: a ideia apresentada foi retirar o gado após três semanas de pastejo, realizar uma aração da área total e quando o capim braquiária desse sinais de rebrota, aplicar glifosato. Um frio correu na espinha do chacareiro.

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O olho do dono é o que engorda o gado. Sabedor desse ditado, Aliberto não deixava passar três dias sem dar uma volta no pasto, observar cada rês. Foi-não foi ele aparecia, pra isso não tinha hora. Numa daquelas tardes no final das águas, meados de março, ele chegou montado no manga larga tordilho e logo atrás a dona da fazenda Baixa da Égua, montada num manga larga alazão. O chacareiro estava por ali na frente da casa, observando as abelhas sem ferrão, cuidando dos vasos que enfeitavam sua varanda. Aproveitou para molhar as plantas da frente da casa, as orquídeas aderidas ao tronco do pé de jambo, uma pitangueira que ele trouxe de Lençóis, na Chapada Diamantina, um pé de Acoaratinga que ele comprou em Campo Limpo, em São Paulo, voltando certa vez de Santa Catarina , e uma palmeira Butiá que ele comprou não muito longe dali, no viveiro Diamante, às margens do Lago Paranoá. Não só as da frente da casa, cada planta tinha sua história, e ele adorava relembrar. Quando ouviu o trote dos cavalos descendo ao lado da casa, ficou animado com a visita e a perspectiva de uma boa conversa. A ansiedade não lhe permitiu esperar, os visitantes estavam longe ainda, ele gritou, “Ô cavaleiro, vamos apear!” Chegando mais perto, o Aliberto veio tirando o chapéu e falando com entusiasmo, “fala Doutor!” Mas, como quase sempre, o Aliberto estava com pressa, ainda mais nesse dia, acompanhado da patroa, o gerente só queria revisar o gado e mostrar para a Coralina o andamento do seu trabalho. Quando chegou em frente ao portão da casa, abaixou a voz e assumiu um tom mais sóbrio, “Ô Tavinho, sinhô tá bão? Aguando as plantas né?! A chuva rodeou lá pelo Capão da Onça mas não chegou aqui…” Sem esperar resposta, já atalhou, “Tavinho, vou descer ali pra ver umas coisas”, e apertou os estribos na barriga do animal pra não deixar qualquer dúvida da sua intenção, a conversa ficaria pra depois. O chacareiro sorriu amarelo e, resignado, voltou para os cuidados com o quintal. Ainda na frente da casa, entre o pé de jambo e a Acoaratinga, antes dessas duas plantas, pouco depois de construir a casa, ele plantou a bela Flor do Paraíso, que ganhou numa aula de jardinagem da professora Regina, professora de floricultura do colégio agrícola, dizendo-lhe que ela seria uma estrela para dar sorte. A flor parece um pássaro, um longo bico lilás e uma crina alaranjada. Na aula seguinte o chacareiro compreendeu o presente e nunca mais esqueceu: o nome científico da planta é Strelitzia Reginae, estrela rainha em latim.

Nevinho Alarcão
Enviado por Nevinho Alarcão em 24/03/2024
Reeditado em 05/04/2024
Código do texto: T8026854
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