A PREMIAÇÃO (SOUL PLANET) —II—

A PREMIAÇÃO

(SOUL PLANET) —II—

E eu estava presente quando Jesus Cristo

Teve seu momento de dúvida e sofrimento

Eu me certifiquei de que Pilatos

Lavasse suas mãos e selasse seu destino.

— (Recorte de “Sympathy for the

Devil” — The Rolling Stones).

No distante horizonte, parece mesmo muito longínquo, dois corpos celestes, seriam dois sóis, dois planetas, duas luas??? brilham suspensos no espaço, irradiando resplandecentes colorações astrais: magenta e ametista. A toada, remota, trazia-lhes à memória, acontecimentos imemoráveis há muito esquecidos. Acontecimentos não sabem ao certo quais. Não identificam, mas eles estão lá. Na profundidade de suas mentes que parecem agora ser uma só psique. Um único pensamento.

O casal, como que obedecendo à mesma e subliminar sugestão, olha para trás, na tentativa de visualizar uma paisagem que, dariam a vida, se preciso, para que ela fosse, pelo menos remotamente, familiar. Desejam, desesperadamente, sentirem-se parte de uma cidade poluída, descer a rua Augusta até a avenida Europa, caminhar aos domingos no Ibirapuera, fazer exercícios físicos nas dependências do Sesc Campestre, apesar do insuportável odor de podre que exala da lagoa próxima.

O lugar, os sons, ensejam, de algum modo, de alguma maneira trivial, que eles sejam muitas coisas que desejaram, mas não conseguiram ser. Coisas que cobiçaram, e, apesar dos esforços, julgaram fora de seu alcance conseguir, agora prometem ser suas. Não há limites para a satisfação de suas antigas vaidades, para a usura e a ambição desmedidas. Ainda assim, ambicionam a todo custo fazer parte de algum “larbirinto doce larbirinto”, brega e decadente, mas situado na boa e velha Terra.

Intensifica-se, no casal Hoiden, uma saudade indescritível de estar fazendo parte da multidão de almas queimando no fogo da sobrevivência, nas calçadas da sociedade mercadológica, no dia a dia da Terceira Guerra Fria Mundial. A Guerra-Fria que se trava nas ruas da megalópole São Paulo. São Paulo, com todas as dependências implícitas de uma vida tensionada por exigências urbanas, às quais não mais podem ser diferenciadas: o que é real e o que é virtual são, agora, a única e mesma coisa.

Sabem eles que todos os nove e meio bilhões de habitantes do planeta de origem deles, a Terra, parecem conformados a aceitar a ditadura da comunicação via satélite. Como se fosse a coisa mais normal do mundo, a deterioração de todas as mentalidades, pelo poder econômico subterrâneo, por detrás dos interesses dos comerciais da TV: os visíveis e os invisíveis. Sendo estes os mais atuantes na psique horizontalizadas pelos celulares. Inexistem, eles agora compreendem, seres humanos. O que há são androides e desse mutirão, dessa multidão, dessa legião, eles são parte integrativa.

O senhor Hoiden gostaria de se sentir, outra vez, a realizar desejos, vontades e ansiedades virtuais, que se confirmariam apenas no plano das personagens animadas da telinha. O casal Hoiden sabe que, na Terra, na boa saudosa e velha Terra, eram seres humanos vivendo uma vida de virtualidades, porém podiam senti-la real, quando caminhantes do calçadão da avenida Paulista. Nesse mundo são apenas seres virtuais.

As lembranças de experiências distantes chegam até ele. O casal sente uma esquisita certeza de que as percepções triviais não mais seriam vivenciadas. A espinha dorsal dói, experimenta uma sensação incômoda, uma saudade profunda de caminhar pela alameda Lorena, entrar numa agência bancária, passar horas numa fila para fazer um simples depósito ou pagamento bancário rotineiro, numa agência da Oscar Freire.

Afinal, a informática não solucionou os problemas das filas. Passam horas nelas, como caminhantes em fileira indiana, arrastando-se lentamente em direção ao caixa da agência bancária. Para amenizar a espera, lá está uma tela de TV com propagandas, noticiários, novelas, e desenhos animados. Parecem eles, espectadores, fazer parte deles.

O casal Hoiden mentaliza: “nem sei mais há quanto mais tempo estou aqui. Um mês, semestre, um milênio? Que importa? Ninguém perguntou se desejo voltar. Ninguém perguntará. Estou prisioneiro desse maldito sadismo de “Soul Planet”.

— “Hahhhaahhh”, murmura a senhora Hoiden, ardendo no que lhe resta de melancolia: São Paulo dos raros pássaros nos parques cercados de almas e habitações de cimento armado. Sampa das áreas verdes esterilizadas, com aves que parecem artifícios mecânicos, como aquelas fabricadas por uma empresa que produz androides em Blade Runner Five.

— “São Paulo, pronuncia nostálgico o sr. Hoiden, como se tivesse abandonado num lugar magnífico, mas execrado, nas sinagogas de hambúrgueres, dos templos dos sanduíches de salsicha dupla com batata palha, maionese, catchup e tortas de banana e maçã.

— “Meu Deus, exclama saudosista a senhora Hoiden, ou ambos simultaneamente, —daria tudo que tenho para sentir outra vez o sabor do “BigBladeMac”, nem que para isto tivesse de enfrentar 200 km de congestionamento.

Estupefato, o senhor Hoiden dirige-se à senhora Hoiden, mencionando mais uma vez suas impressões sobre “Soul Planet”. Ambos desconfiam que nem precisam abrir a boca. Para expressar pensamentos, basta a simples menção de uma ideia, para ela ressoar imediatamente na mente de ambos, sem precisar de vocábulos.

Pintores e paisagistas sentir-se-iam, em meio a tanta magnitude e estranheza, inspirados a reproduzir em seus quadros, imagens incomunicáveis, dessa imensa e anômala edificação de dramática beleza, da qual fazem parte, agora, como se meros bibelôs, apáticos e obsoletos, arcaicos como se fossem antiguidades de há séculos.

Por que se sentem tão desconfortáveis? Jamais poderiam imaginar que pudessem vir a mendigar que coisas lhes fossem familiares:

Um objeto, um inseto, um som, uma música. Desistiram de seus patéticos apelos pelo surgimento de qualquer ser humano que pudessem identificar, a partir do uso de suas memórias. Memórias agora tão distantes, parecem não pertencerem mais a eles, talvez pertençam agora, a outras pessoas que viveram em épocas passadas, há centenas, milhares de anos. Memórias que chegam sadicamente até a mente única de cada um deles.

A ansiedade terminal por alguma lembrança do planeta Terra, pelo lar original, estranhamente persiste. Persiste fragmentada em vã expectativa, em mil pedaços de ilusões. Notam, mais uma vez, que esse muro que separa o ontem, o hoje e o amanhã, prolonga-se longitudinalmente por sobre suas cabeças, até onde o olhar alcança. Não há mais, para eles, passado, presente e futuro. Só a materialidade do Tempo.

Agora, pensa o sr. Hoiden, a impressão é de que a estrutura é de mármore de cores cambiantes. Não mais se apresenta como uma alucinação de vitrais, aquelas pinturas animadas desenhadas no muro. O efeito em perspectiva estende-se longe, muito longe, como se penetrasse nas profundezas imperecíveis do infinito.

Pode ser, se não for realmente apenas uma sequência de alucinações, uma construção de titãs. Somente gigantes ousariam investir num colosso arquitetônico de egrégia solenidade, sem nenhuma serventia que pudessem atinar. Por mais que se estimulem, sentem-se desalentados, não conseguem acertar o porquê da complexidade sem função do conjunto arquitetônico. Esse ermo desconhecido produz uma angústia ímpar: quânticas quantidades de desamparo.

De que se alimenta essa fonte de energia??? Talvez dos conflitos, das neuras, da inquieta frustração emocional, política e econômica das pessoas. Pessoas atraídas para essa espécie de Black Hole anímico. O maquiavélico desafio de estar em “Planet Soul”, isto sim é pesadelo. Fazem um grande esforço no sentido de rememorar o passado. Como foram capturados pela teia de aranha negra de “Soul Planet”??? Lembram ter bebido meia garrafa de vinho branco antes de chegarem ao palco do quadro “Os Portais da Esperança”, do programa dominical da emissora de tv do DomingãoDo100zão, para receberem os carnês de crédito e as passagens.

Evitavam excesso etílico ou outro qualquer. Afinal, tinham ambos, somadas, cento e quatro primaveras. A estrada da redundância não os tinha conduzido ao templo da sabedoria, mas ao mais tenebroso e indescritível tédio. Daí terem ganho com grande satisfação as passagens para esse lugar mítico que a propaganda desafiava: “Venha conhecer do que é feita a alma. Ganhe sua passagem para “Soul Planet”.

A SENHORA HOIDEN começou a memorizar, passo a passo, como haviam chegado a esse lugar extravagante, de paisagem enigmática. Como podem ainda estar aqui, sob efeito de que química alucinante??? Que espécie de perversão virtual poderia mantê-los nessa perplexidade, com que objetivo inconfessável??? Arrebatados pela irreprimível exaltação da sensibilidade, redescobrem, como se pela primeira vez, que estão envolvidos num diálogo sem sons. Pensam juntos as mesmas perguntas e respostas, como se só pudessem ser, quando muito, a imitação do outro:

— Lugar estranho. Um vasto descampado sem fronteira física visível.

— Estou com medo.

— Não, estou apenas muito só. Nunca passei por uma sensação de tamanha inquietação. Nem quero, se tiver escolha, estar neste lugar outra vez.

— Para não ter de voltar, preciso primeiro sair dele. Não sei como fazer isso acontecer.

A ideoplasma flutua, ao mesmo tempo, na mente do casal, como se ambos tivessem uma só cabeça: uma espécie de diálogo sem interlocutor:

— Vamos lembrar como e por que chegamos aqui. Então, talvez possamos conseguir imaginar um jeito de sair (como se fosse possível essa felicidade indescritível): sair fora, sair fora daqui, sair fora, não voltar nunca jamais.

— Lembro, preenchemos um questionário na locadora de vídeo. Como poderíamos imaginar que estavam falando sério quando prometiam uma passagem, com ou sem volta, para uma visita, provisória ou definitiva, à desolada magia de Soul Planet???

— Hesitamos em preencher o quadradinho da opção sem retorno. Sorrimos com a possibilidade de ganhar a ambicionada passagem para este ermo cósmico.

— Aqueles filhos da mãe do DomingãoDo100zão. Zombaram de nossa ignorância. Como éramos ingênuos. As lamentações não abonam o arrependimento. Muita idade e toda essa ingenuidade. Como pode ser possível. As pessoas gostam de ser levados no bico.

— Eles sabiam. Quando ganhamos as passagens de entrada para “Os Portais da Esperança”, tinham conhecimento desta desolação tecnológica desértica. Estavam querendo livrarem-se de nós, por algum motivo que não atino.

— Sabe por quê? Queriam nos distanciar de nosso lar, de nosso modo de vida. De nosso planeta de origem. Com qual finalidade???

— Os produtores do programa líder em audiência, o DomingãoDo100zão, talvez não soubessem ao certo o que acontece aqui. Esse lugar passa a sensação de que dele é negado sair para sempre. Sinto como se estivesse em estado de coma, numa espécie de post-mortem, sentindo o que sentem milhares de pacientes nos centros de tratamento tanatológico, que narram experiências visuais, após terem clinicamente morrido, e depois de terem sido considerados mortos pelos médicos, conseguem, milagrosa e inexplicavelmente, voltar a pulsar. O pulso voltar a pulsar: é tudo que querem.

— Sim, o coração ainda pulsa. Sei que não posso mais usá-lo no sentido estimativo. Mas ainda pulsa, posso senti-lo daqui.

O coração de Antron outra vez começa a pulsar, como que reanimado por uma força estranha, uma vontade vinda dele. Tal força não deseja nem permite que voltem a fazer parte de outra dimensão, do outro lado da vida que tinham na Terra.

— Esse lugar então é o outro lado? A quarta dimensão??? O próprio Tempo???

— Sem que se tenha morrido??? Não sei, talvez sim, talvez não seja. De qualquer forma não gostaria de estar outro dia aqui. Nesta sala de estar da desolação.

O casal Hoiden sente-se conduzido, intencional e gradativamente, a um estado de imponderabilidade definitivo. Aumenta sadicamente o volume do monólogo/"diálogo" interior. Ampliam-se os caracteres de suas personalidades, até fazerem deles pessoas insuportáveis para si mesmas. São abandonados por seus egos. A intolerância, a repetitividade enfadonha com que se manifestavam, exige deles uma mais alta intensidade, uma pressão sanguínea insuportável.

O casal sente-se culpado, terrivelmente culpado, por ter sido como era antes da viagem ao mundo de “Soul Planet”. Pensava, com a viagem, burlar o tédio virtual do quotidiano. Riam-se da arenga supersticiosa de algumas pessoas conhecidas. Na Terra suas opiniões eram francamente desfavoráveis a uma explicação metafísica da vida. Tinham tais explicações na conta das compensações para os impulsos mais primitivos e reprimidos na psique. Então, aqui está a natureza fundamental da realidade??? O sr. Hoiden pensou. Ou pensaram ele e a mulher simultaneamente:

— “Aqui estão as reais conexões entre mente e matéria??? Entre atributo e substância??? Entre necessidade e possibilidade”??? O casal Hoiden lembra vagamente dos versos de uma canção do início do da quarta década do século XXI. Cantava-se mais ou menos assim:

“Nada tão natural/nada tão trivial/uma flor num jardim/Todo amor vai ficando assim/que nem sinal inúteen/o outro interpreta mal assim/A banalidade vira estopim/detona o caos, enfim/Nosso amor, tão normal/De uma anormalidade sem fim/Somos mesmo um casal natural/Do começo de mundo do fim”.

Agora sente-se induzido a aceitar que existem forças ancestrais poderosas. Elas estão submetendo casais incautos à benevolente violência insuportável dessas sensações tenebrosas, violentas e nocivas. Forças provenientes da alma cativada, sem liberdade de sair delas. Precisa organização contra elas. O racionalismo do casal Hoiden se diluiu nessas sensações, nas quais mergulharam de cabeça quando chegaram a esse lugar.

Antes do evento Planet Soul, a senhora Hoiden acreditava que as cenas terríveis e sanguinárias, que seduziam diariamente bilhões de espectadores dos jornais TV visíveis em todo o mundo globalizado, eram um fenômeno de má gerência, econômica e social, dos recursos da sociedade, administrados pelos políticos investidores nas sociedades anônimas da comunicação e informação planetária. Aceitava tudo com passividade porquê, afinal, essa conspiração, chamada civilização, é parte do desenvolvimento da cultura no planeta Terra. As coisas são dessa forma, e pronto.

O casal Hoiden queria-se pragmático. Agora nem tanto. Sentia-se à mercê das contradições e inconsistências do que existe e inexiste, de uma para lógica muitíssimo mais intensa do que a lógica do normal ou do paranormal. O casal Hoiden sente-se parte de uma realidade fractal, da química de uma geometria de todos os tempos do Tempo manifestando-se simultaneamente. A mente deles por certo não estava preparada para suportar essas tensões inusitadas.

Cada uma memória fragmentara-se em segmentações ancestrais que parecem não ter fim. Então agora sabem ser parte do “Aleph” borgiano, lugar onde convivem, sem conflito, todas as visões do mundo, sob todos os ângulos. O pássaro que é todos os pássaros alça voo nos limites mágicos de um círculo cujo centro está em todas as partes. O anjo de múltiplas asas, um querubim voa simultaneamente em todas as direções. Direções, sem pontos cardeais. Direções cósmicas. Cada coisa uma infinidade de outras. Daqui todos os pontos do universo são visíveis.

O casal Hoiden sente-se agora sob controle de outros seres mais fortes e mais poderosos, como as Fúrias ou as Eríneas. Estão possuídos pela exaltação cega e irresistível, paradoxalmente tediosa que os dirige e controla coletivamente, impondo condutas pessoais e sociais destrutivas, criando uma sociedade satanizada na velha e distante Terra, onde a dor e o horror de seres programados para falhar e sofrer, alimentam os avanços da tecnologia. Assim como alimentam a malignidade da paisagem desse lugar maldito, criado por arquitetos coniventes, construído por engenheiros da maldade, da cupidez e da corrupção. Nitidamente, o casal reproduz trechos de um parágrafo do livro Cinco Réis de Gente, de Aquilino Ribeiro: “Decerto que me formigava na polpa dos dedos, com uma cobiça atávica, encadeada desde os tetravôs romanos, sôfregos pelo vil metal.”

O Planeta da Alma é isso: estranheza (da paisagem) e morbidez (PSI).

Sentem-se inadequados e destrutivos. Revelam-se as engrenagens cósmicas medonhas que, desde o nascimento motivam a raça humana em direção ao abismo, aos muros imperceptíveis, invisíveis, que separam as pessoas e os países em interesses inconciliáveis. Inconfessáveis.

O casal Hoiden sente-se parte de uma mesma alegoria, desconhecida e ao mesmo tempo estranhamente familiar. Uma terceira voz, que era também a deles, ressoa compassiva no âmago de suas mentes, vinda dos confins desses espaços, reproduzindo-se em intermináveis reverberações:

DECIO GOODNEWS
Enviado por DECIO GOODNEWS em 06/11/2023
Reeditado em 09/11/2023
Código do texto: T7925656
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