A PREMIAÇÃO (SOUL PLANET)

A PREMIAÇÃO

(SOUL PLANET)

“Piloto um tanque de guerra/Mantenho patente de general/

A Blitzkrieg avança/Os corpos fedem/Prazer em conhecê-la/

Você sabe meu nome/O que te enreda/É a natureza de meu

jogo/Os reis da TV e suas Rainhas/A lutar por décadas/Pelos

deuses todos que criaram. — (Recorte de “Sympathy for the

Devil” — The Rolling Stones).

O casal Antron Hoiden habita em Sampa, no Jardim América. Gosta de ficar assistindo programas de tv, alguns dos quais não veem em comum. O sr. Hoiden mantém uma tv com programações multicanal, no quarto, outra na sala.

O casal Hoiden de tudo faz para fugir do tédio na rotina diária. Vai a comemorações, exposições, gosta de festas de aniversário e casamento, passa fins de semana no apartamento da praia, faz incursões turísticas no nordeste brasileiro, assina revistas e dois dos melhores jornais impressos.

O sr. Hoiden é assinante da maior operadora de TV por assinatura via satélite. Com frequência o casal comparece à programação teatral e musical no Teatro Municipal de São Paulo. A corretora de TV à qual é afiliado está a divulgar uma promoção que oferta duas passagens para uma muito cobiçava viagem interplanetária à Marte, onde está estabelecida uma colônia de habitantes com trinta mil cultivadores do agronegócio marciano, entre eles dedicados cientistas que perscrutam o subsolo em busca de vestígios para exploração de minerais.

Marido e mulher Hoiden são, o que se poderia afirmar com precisão, um casal sapeca. Não raro aparecem em eventos sociais com notas nas colunas dos jornais. Excursionam, vez por ano, em países latino americanos e europeus. Estão a participar do sorteio mensal que garante aos ganhadores uma passagem tendo Soul Planet por finalidade.

Há duas condições básicas para a participação no sorteio: o casal deve estar a participar, primeiro, do plano que inclui mais de 280 emissoras com canais de esporte, filmes e séries, canais abertos, adultos, infantis, canais de notícias e variedades, canais de cultura, de música pop e clássica (“Stingray music”), canais de rádio e de cortesia e programação para adultos e idosos. A segunda condição é que a soma das idades do casal deve ultrapassar os cem anos, ou somar cem cravado de idade: 45 e 60, 40 e 70, 44 e 66. A soma das idades, insiste o regulamento dos partícipes, deve ser 100 ou mais de cem primaveras comprovadas nos registros de nascimento.

A imprensa especula o porquê dessa condição. As opiniões são muitas e divergentes: Testar a condição do corpo humano dos idosos sob a baixa pressão atmosférica de Marte. Pesquisar a destruição de glóbulos vermelhos (hemácias) pelo corpo deles. O estudo do processo biológico comum no sangue, mais intenso no espaço planetário do planeta vermelho. A reação em idosos pode ser mais intensa. Mais glóbulos vermelhos seriam destruídos??? A percentagem desses glóbulos vermelhos destruídos em certos intervalos de tempo de permanências sob condições de pesquisa e controle.

“Soul Planet”, é também conhecido como um lugar sem dialética. Não se sabe ao certo o que isso quer dizer. É que seria a existência de uma área povoada por um sistema de ação sem prática. Um sistema de equivalência semântica entre “prática teórica” e “sistema de ação prático”. Ambos são conceitos que se resolvem, uma vez fundidos, conectados numa unidade de sentido, síntese das tensões opostas. Uma espécie de ação sem prática, na qual os idosos vivem o drama platônico de uma vida sem interesse material. Um ideal de castidade, uma ficção cultural sem substância simbólica.

“Soul Planet”, modelo de um modelo, um mimetismo sem cópia. Uma forma autônoma de elocubração especular e autônoma de eficiência sem comprovação. Sem prática especular. Ou, melhor dizendo: a busca dos melhores rendimentos possíveis em um certo e delimitado espaço de tempo, vivenciando um alto risco. “Soul Planet” é a menina dos olhos das especulações jornalísticas, assim como nos ambientes das ciências teóricas que se diferenciam de outras ciências pela propriedade de seu objeto. Objeto de especulação.

“Soul Planet” é, portanto, uma premiação altamente ambicionada pelos casais de idosos que se inscreveram no concurso, afetados pela materialidade obscura dos objetos físicos disponíveis, no se desdobrar da realização dessa inaudita, desejada e cobiçada aventura interplanetária: “Soul Planet” despertou o interesse nacional pelo desdobramento da competição entre os casais partícipes.

As diversões TV visíveis de 2055 estão cada vez mais competitivas, estranhas, inusitadas, ousadas. Os canais de TV, empenhados em um vale tudo, para ver quem atualiza mais depressa as tendências do entretenimento de mercado. Atualizar as programações é a paranoia dos gabinetes da produção. A ansiedade pelo lusco-fusco, a estrela da bunda mais detonante do momento, a xoxota mais nova que fuma, fala e joga facas. O bumbum mais cheio de graça, as mágicas das Três Marias, que segundo o showman da hora do Canal100, são provenientes de um planeta da Constelação homônima.

Cada retransmissora via satélite busca o inusitado com maior avidez que as demais. A Guerra nas Estrelas das programações atinge piques de audiência, com baixarias tipo um programa kafkiano denominado “Baratinha Livre”, dirigido a idosos com mais de 80 anos. O limite de média de idade aumentou nessas três décadas do século vinte e um. Os TV espectadores migram, canal a canal, em busca dos embustes TV visíveis do mais lustroso personagem virtual no lusco-fusco do maior ibope.

O ponto básico da programação TV visível, não apenas a do Canal100, é a satisfação da exigência dos TV espectadores por comoção barata, fruta supostamente dotada de inovações. Inovações que, na realidade, não passam de prestidigitações da publicidade e propaganda do Canal100 visando manter as pessoas inconscientes de si mesmas. Alguns comentaristas definem tal agenda de programação das emissoras de como sendo “peixe podre para videotas”. O profissional mais cotado da praça chama-se “detonador visual virtual”. Aquele cara que te mantém plugado na sala do sofá falando bobagens.

O “detonador” do Canal100 criou alguns sucessos de audiência: Além do “Baratinha Livre”, Aninha bobinha e maquiagem. São também líderes de auditório: Ratinho Preso, Papagaio Brega; Bacalhau do Lalau, Adriana Tuboteu; O Guabiru “Black-tie”, Tudo Pelo Doleiro, BBB é Demais. Mas, o quente mesmo, o sucesso incontestável, a lavareda mais ardente a queimar nas mentes dos TV espectadores, são os sorteios mensais do espetacular quadro “Portais da Esperança” no programa DomingãoDo100zão.

A casal Antron Hoiden está realmente surpreso por ter sido um dos vinte e quatro casais do último sorteio mensal. Por cada segundo de publicidade neste quadro do programa, o departamento de propaganda do Canal100 fatura U$ 1.300.000 (um milhão e trezentas mil verdinhas). Trinta segundos representam treze milhões de verdinha. Treze milhões em caixa. E o programa desdobra-se por seis horas.

As empresas disputam o mercado via comerciais para seus produtos, com uma agressividade inaudita. A mega violência que transborda de alguns “clips”, promete mais conforto, divertimento e lazer, se o TV espectador adquirir esse ou aquele produto globalizado, ao mesmo tempo que participa do sorteio de seis casas e outro tanto de automóveis importados.

Aos carecas, os produtos milagrosos asseguram vastas cabeleiras em três semanas. Os que querem camuflar as cãs, podem conseguir cabeleiras negras ou ruivas com “Fofão 2045, ou “a naturalidade da cor dos cabelos de quando você tinha quinze anos”. As gordinhas e gordinhos podem comer de tudo na quantidade que quiser, se, depois das refeições, ingerirem uma cápsula de "Magrecil, Corpo A Mil": você poderá ser um super gourmet, com uma aparência de atleta olímpico, pra ninguém botar defeito.

O sr. Hoiden, contempla emocionado os comerciais projetados em tela múltipla, no intervalo do programa em que está sendo entrevistado. Maravilhado, ele olha em volta para o auditório repleto: as opções são muitas. Ele não sabe para que palco olhar, tantas as tentações visuais tecnologicamente produzidas. Elas maravilham a ingênua sede de plumas e paetês do mercado de TV espectadores. Quatro grupos de garotas dançam sensualmente nos palcos, vestem seis diversas grifes concorrentes no mercado da baixa e média moda, a moda mais popular. Elas completam o visual dançante e delirante do circo “high-tech”, via satélite, com seus pentelhos coloridos por cabeleireiros especiais, com cursos de mestrado em lacinhos púbicos, nas donzelas dançarinas dos programas nobres do “showbiz”.

Um dos mais badalados comerciais do momento, mostra o vinco da bunda de uma mocinha abrindo-se aos poucos para os lados, a partir da gradativa pressão da ponta dos dedos das mãos. Saindo do buraquinho, em direção à cara, não mais pasmada, dos TV espectadores, a bela plumagem proveniente de quatro tipos de aves em franca extinção na Amazônia. Seguidas às plumas da fresta baqueana das mocinhas, saem amostras da nova embalagem com que será lançada a mais recente marca de cerveja diet do grupo de bebidas cartelizado pouco depois de 2033.

Outra garota, representando o quarto grupo de dançarinas no palco monumental central do DomingãoDo100zão, aparece no comercial curvada para a frente, o sorriso magnífico, mostra os dentes grandes e branquíssimos. “O branco 100 limite de seus dentes”.

— “Venha sentir as delícias de vestir esse jeans”. A grife apresenta um modelo de bermudas e calças, sociais e esportes. A novidade é o zipe que abre para cima e para baixo, a linha de costura curvando-se para direita ou para a esquerda.

Os grupos de dança no palco costumam representar encenações criadas para a venda de produtos e serviços. O casal Hoiden sempre teve curiosidade de poder apreciar bem de pertinho esse truque virtual: as projeções a laser de garotas seminuas que nadam no espaço do palco principal do programa, como se fossem peixes num aquário límpido e transparente. De perto assim, o visual consegue ser ainda mais surpreendente.

Suspense, ansiedade, expectativa e confiança, transbordam dos rostos dos participantes na plateia. Uma dose extra de oxigênio é fornecida a cada hora e meia, de uma central que o distribui por todas as dependências onde são realizadas as filmagens do DomingãoDo100zão. Seu animador é considerado a “Besta do Coração de Plástico”. Após um transplante muito noticiado.

Uma garota muito parecida com a antiga Gletez, par com outra, clone da anciã Xuxa, tira de dentro de uma imensa urna ventilada, o envelope com os dados do casal ganhador. Telões repetem as imagens da premiação do último domingo do mês, quando duas séries de doze passagens completam a cota mensal de sessenta felizardos com embarque garantido para “Soul Planet”.

Uma dúzia de passagens são sorteadas em cada um dos três primeiros domingos do mês. No quarto e último domingo, duas dúzias de passaportes especiais, com poltronas garantidas na 1ª classe da nave, são emitidas pela polícia Federal. A PF autoriza seus portadores ao embarque em direção a “Soul Planet”, devidamente autorizado pelas instituições competentes. Os ganhadores das vinte e quatro passagens sorteadas na apresentação dominical mensal, especial, do DomingãoDo100zão, mostram-se soberbamente satisfeitos. As entrevistas com os casais ganhadores são feitas a cada quinze minutos em flashes. Os casais de homem/mulher, homem/homem, mulher/mulher, estão fora do padrão preconceituoso.

A propaganda do programa alardeia, após muita fanfarra comercial, os casais premiados. Muita gente alimenta grande ansiedade por ganhar. A coisa funcionou para o casal Hoiden. — “Inacreditável, Antron, querido”. A senhora Hoiden olha a cartinha, amassadinha, miudinha, na mão do apresentador e exclama de si para consigo: — “Mal posso crer em meus olhos virtuais”.

O DomingãoDo100zão confirma: ela e o marido foram contemplados com uma série de viagens, marítimas e aéreas, tendo “Soul Planet” por limite. O casal Hoiden festeja com amigos e parentes, próximos e distantes. Os telefonemas de felicitações não param de tocar, para a felicidade do casal.

— Que sorte, comenta alguém na festa, com uma taça de champanha afastando-se dos lábios. A voz sensual de uma socialite, estudante de comunicação, insatisfeita pelas férias tediosas, reclama em tom lamurioso:

— Daria tudo para estar no lugar deles, pena que não possam vender as passagens, eu pagaria trezentos mil dólares por elas. A convicção do senhor Martins Flambert, de que ele também pagaria tal quantia à vista, cede lugar ao comentário da senhora Fonseca Dijon: “Infelizmente a produção do progrma proíbe os ganhadores de vendê-las, eu faria um lance de seiscentos mil dólares”.

Conhecer “Soul Planet” está valendo uma grana preta.

O casal Hoiden sente-se privilegiado e feliz pela oportunidade de visualizar novos horizontes e paisagens. Não escondem de ninguém a satisfação:

— “Haaahhah!!! Exclama entusiasmado o senhor Hoiden:

— “Viajar até outro planeta, como se fosse um astronauta”. A palavra “Viajar” traduz a saciedade de uma ansiedade por conhecimento de novos espaços e paisagens até então interditas às pessoas não treinadas pela Nasa para embarcar ao espaço. Quase não conseguem acreditar que estão mesmo seguindo em direção a esse lugar cobiçado. Conhecer essa nova terra prometida, prerrogativa exclusiva dos ganhadores do concurso:

— Venha Conhecer Do Que É Feita a Alma. Ganhe Sua Passagem Para “Soul Planet”.

Sim, finalmente a aflição pela exploração turística do lugar terminou para o casal Hoiden. Afinal, as abençoadas passagens foram conseguidas. Vão pisar o solo desse local sagrado, dessa região mágica que todos, mesmo os TV espectadores não casados, ou os que não somam cem anos, nem ultrapassam esse limite de idade, tanto desejam conhecer. Sentem-se, a princípio, perfeitamente à vontade. “

— “Mas viver não é apenas chegar, cicia o senhor Hoiden, há de se chegar, adaptar-se e permanecer, se possível. A colonização de Marte está em curso’.

As sensações do percurso são por eles admiradas. Ver a Terra lá em baixo. Desprendidos do solo. Descolados. Em direção a outro orbe. Quem diria que poderiam conseguir. O pousar da nave em território alienígena. Todas essas coisas eram realmente por demais sugestivas. Inusitadas. Raras. Extraordinárias.

Uma vez no ““Planet Soul” ”, passadas as surpresas e emoções do percurso e da chegada, a senhora Hoiden comenta, no escondidinho de sua particular intimidade:

— “Esse sítio tem uma geografia incrível. Em nenhum dos países que conheci na Terra (sim, porque essa localidade não pode ser a Terra), há mais estranho visual. A natureza desse lugar não tem nada de natural. Tudo parece resultar de uma tecnologia distante da Terra, vinda de outro longínqua área ambiental”. Uma Tristura profunda. A melancolia do abatimentos de todas as suas anteriores sensações de vida, estão afligidas, assombradas.

Nesse momento, sem saber por que, uma inusitada nostalgia invade cada poro do corpo. O casal lembra-se, com imensa saudade, da poluída São Paulo, como se jamais fosse voltar a vê-la. A nítida sensação de que muitas memórias remanescentes permanecem mais vivas agora, trazidas à consciência por algum misterioso nicho propício da mente mesmerizada. Memórias que se manifestam através de signos estranhos, paisagens inauditas, prenúncio de revelações sobre algum inferno ou paraíso antiquado por explorar, interna e exteriormente.

O senhor. Hoiden extasia-se com seus botões, enquanto uma imensa estrutura, cor ocre, resplandece acima de suas cabeças: Que bela inutilidade, pasma-se. Misterioso êxito emana da vã intensidade luminescente do falso muro. Não consegue atinar como essa parede mostra-se capaz de "mastigar" a quarta dimensão. Juntando todas as impressões, essa paisagem é o próprio Tempo ou seu Criador??? Pergunta-se:

— Quem teria financiado esse colossal cenário que intensifica sobremodo essa angústia? Por que não permitiram que continuasse interdita, a olhos humanos, se seu efeito é tão devastador? A física da relatividade causa surpresas perceptivas nunca dantes imaginadas.

A sensação de que o muro suspenso funciona como uma espécie de módulo mental de indução magnética inconsciente. O poder que emana desse lugar só pode ter sido criado e gerido pela força superior de um Deus dos sussurros. A senhora Hoiden treme, por intuir que o mais humilde dos deuses, que mesmo um deus sem dentes, seria capaz de mastigar a quarta dimensão, com a facilidade com que ela ou o marido teriam para saborear uma tangerina. Ou uma maçã.

Pensando na magnitude dessa força, o casal, perplexo, contempla as paredes internas da edificação, através da qual está sendo conduzido.

— “Ahhhhhaah, essas constantes linhas geométricas, estéticas de proporcionalidade imponente, de magistral e imponderável arquitetura. Nada disso nesse planeta foi dito nos documentários exibidos na Terra sobre ele. Essa paisagem, inaudita e desarticulada mensagem inanimada. Transmite uma extenuada e impulsiva inanição. Está ela imune a qualquer interferência que interfira nessas estranhas percepções. Quem suportaria tê-las frente os olhos por mais algum tempo??? A senhora Hoiden comenta:

— “Pode uma arquitetura ser ao mesmo tempo Art nouveau, Clássica e Gótica??? Como se tivesse sido construída por arquitetos fanaticamente profanos e fastidiosamente sacros. Oh, esse paisagismo ambiental de ordem Dórica, Toscana, Coríntia, Compósita, inspirações para um projeto construtivo fundamentado em comodidade, ao mesmo tempo que em beleza estética. Não dá pra entender”. O sr. Hoiden complementou:

— “Lembra-me o livro de Léu Vaz que, em suas “Páginas Vazias”, quando afirma: “Porque a tal nível de perfeição haviam chegado os artífices de outrora na reprodução manual de vistas, cenas e figuras, que o prestígio de sua arte obnubilou o juízo e o critério dos homens”.

Suas mentes parecem fundirem-se, admiradas com a propriedade de uma única percepção. Já não são duas almas separadas, seus intuitos moram no interior de uma única tensão. Ambos não conseguem sair desse mesmo lugar interior, como se prisioneiros dele. Experimentam um deslumbramento inaudito, ao contemplar o nível de perfeição a que chegaram os artífices desconhecidos das cenas e figuras de significados indefiníveis, para juízos e critérios desses turistas, habituados à cultura e civilização da Terra.

Veem agora um portal a interligar-se com outros portais a cada cem metros, através desse muro. Ele mais parece uma fita marrom, quatro e meio metros de altura, comprimento interminável: uma espécie de grande muralha da China a doze metros do solo, a conectar-se a níveis profundos da inconsciência, sem nada, aparentemente, a sustentá-lo.

Esquivo e estupefato o senhor Antron admira o muro que separa nada de coisa nenhuma. A senhora. Hoiden rói os dentes, contraindo com força os maxilares para os lados, para cima e para baixo, certificando-se de que não está no transe de nenhum sonho esquisito. Sente-se, não sabe porquê, vertiginosamente culpada por não estar dormindo e sonhando.

As inquietações do senhor Antron parecem fundir-se morbidamente com a perplexidade da senhora Hoiden: estão, há horas, ouvindo estranha linguagem rítmica, será um “mantra” gregoriano??? Os sons são como uma fórmula encantatória, com o poder de materializar a divindade invocada. Que divindade???

Esse mecanismo sonoro mágico, fascinante, conduz com facilidade seus pensamentos. Buscam atinar. Ora parece uma música “new age”, talvez uma sonoridade dodecafônica indefinível, tipo as composições atonais do austríaco Arnold Schöenberg. Experiências sonoras efetuadas a partir do emprego dos doze semitons da escala temperada. Os sons parecem brotar do mais ermo cantão do Cosmo. Sentem-na trespassar todos os espaços do corpo com essas reverberações intangíveis.

A impressão de que, pelo menos 8/9 dessas novas sensações permanecem na mente, nas células do corpo, absorvendo-as em direção a um depósito inconsciente de inclusões PSI inusitadas. Não sabem de onde vêm, nem o que significam esses timbres musicais. Sentem-se transformados em meras projeções dessa maquiavélica, benevolente e implacável intencionalidade.

DECIO GOODNEWS
Enviado por DECIO GOODNEWS em 06/11/2023
Reeditado em 06/11/2023
Código do texto: T7925652
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