O Espírito De Prata - Capítulo XVII

Capítulo 17

Uma Biografia

Parte 3

Os trabalhos de composição e ensaio de “O Espírito De Prata” estenderam-se por dois meses. Os de gravação, por sua vez, duraram uma semana.

O disco foi lançado no início da segunda quinzena de setembro. De suas doze faixas, sete chegaram a ocupar posições de destaque nas principais paradas de sucessos do Brasil. Inesperadamente expressivas, tanto no Brasil quanto na América Latina e na Europa, suas vendas alcançaram números surpreendentes, a ponto de lhe renderem discos de ouro, platina, platina duplo, diamante e diamante duplo.

Crítica e público abraçavam-me entusiasmados. Minha gravadora tratava-me como um astro. Minhas apresentações cresciam em quantidade e em qualidade, saltando de quinze para vinte e cinco shows por mês e passando a contar com os mais avançados recursos tecnológicos possíveis em matéria de som, produção, cenografia e iluminação.

Com quinze anos de carreira recém-completados, eu finalmente havia conquistado um lugar definitivo no chamado “Panteão Da Música Popular Brasileira”, como sempre sonhara. Contudo, diferentemente do que eu poderia esperar, tal conquista me deixava deveras bastante preocupado.

No interior do meu ser, uma voz alta e clara dizia que o grande êxito com que meus sobreumanos esforços me haviam premiado seria apenas o prelúdio de uma imensa decadência que me aguardava. Decadência que tudo teria a ver com a inimizade surgida entre Téo Dias e eu por conta da silenciosa disputa que vínhamos travando pela atenção, pela afeição e pelo coração de Heloísa.

Todos os músicos que comigo participaram dos processos de concepção, composição, ensaio e gravação do repertório de “O Espírito De Prata” acompanharam-me em sua tournée, inclusive Téo Dias e Heloísa Krigher.

Sempre que Téo se distraía, Heloísa e eu, reféns indefesos da forte afinidade que nos atraía mutuamente, trocávamos intensos e misteriosos olhares. Olhares apaixonados e plenos de promessas de um Amor sincero e eterno. Amor desprovido de algemas e isento de cobranças.

Em maio de 1975, uma proposta irrecusável veio interromper, por um tempo, as apresentações pertencentes à tournée de “O Espírito De Prata”. A matriz estadunidense da gravadora responsável pelo lançamento dos meus discos desde 1967 propôs que fosse lançada uma edição norte-americana do disco, a qual receberia o nome de “Silver Soul” e teria, além das doze faixas da edição original brasileira, um long play adicional com nove músicas inéditas, perfazendo-se o total de vinte e uma canções agrupadas em um álbum duplo.

A proposta foi aceita imediatamente e efusivamente celebrada com um farto jantar no “bom e velho” Antares.

Compareceram à comemoração todos os integrantes da equipe que trabalhou comigo em “O Espírito De Prata”, a excetuar-se pelo Téo e pela Heloísa.

O primeiro estava em uma reunião com seus companheiros de The Kings. Reunião na qual seria decidido se ele continuaria ou não no conjunto e quem o substituiria caso ele deixasse o grupo.

A segunda, provavelmente pressionada pelo namorado, simplesmente, declarou-se indisposta.

O prazo de que dispúnhamos para compor o repertório do long play adicional de “Silver Soul” era demasiado curto. Por isso, durante o jantar no Antares, resolvemos que a Francisco Ferrari, a Márcio Krigher e a mim seria atribuída a missão de compor as canções. Aos demais músicos, caberia arranjá-las e ajudar-nos em sua execução. As gravações ocorreriam no salão destinado a abrigar o GKF Studio. Ferrari e eu nos encarregaríamos de levar os registros aos Estados Unidos, de acompanhar os processos de mixagem e masterização do long play nos estúdios da gravadora em Los Angeles, de observar a prensagem e de participar da solenidade de lançamento do álbum.

Foi assim que resolvemos. Foi assim que, felizmente, tudo se deu.

Apesar de todo o êxito alcançado por “Silver Soul”, um acontecimento deveras triste acabou por marcar a trajetória do disco.

Ei-lo:

Logo que o jantar comemorativo de “Silver Soul” no Antares terminou, Márcio convidou-me para ir até a sua casa. Disse-me que tinha algo muito importante para me mostrar.

Passou-me pela mente a profunda impressão de que o que Márcio pretendia mostrar-me tinha alguma coisa a ver com a série de canções que precisávamos compor para o long play adicional de “Silver Soul”. Por esta razão, aceitei-lhe prontamente o convite, pedindo-lhe, porém, que nos dirigíssemos antes à minha casa, a fim de que pudéssemos buscar meu contrabaixo.

Márcio sequer esboçou algum questionamento ao meu pedido. Aceitou-o sem resistência. Fato que me fez crer ainda mais na impressão que me assaltava o espírito.

Depois de passarmos rapidamente pela minha casa, dirigimo-nos, conforme havíamos combinado, à residência do Márcio.

Lá chegando, ele sacou do seu saxofone e me apresentou um tema que, há pouco, lhe avia surgido. Eu, a meu turno, saquei logo do meu contrabaixo. E, juntos, fomos encaixando notas e frases, de modo que, dentro de poucos instantes, pronta estava mais uma canção de nossa autoria.

Era a primeira canção composta para integrar o repertório do long play adicional de “Silver Soul”. Chamava-se “Blue Angel” e se tornaria, tempos mais tarde, a música mais tocada de todo o álbum.

“E aí, Márcio? Você não acha que essa música tem a cara da sua irmã Heloísa?”

“Acho sim, Zinho.”

“E que tal seria se a gente dedicasse essa música a ela?”

“Por mim, tudo bem. Mas, penso que, se a gente fizer isso, vai acabar arranjando um tremendo problema com o Téo.”

“Fica tranqüilo! Com o Téo eu me viro! Mas, acho que essa nossa composição ficaria bem legal se, no lugar do seu saxofone, puséssemos a flauta da Heloísa para acompanhar meu contrabaixo.”

“Eu concordo, Zinho. Acho que essa música foi feita sob medida para a flauta da Heloísa. Mas, acho também que você não deveria provocar o Téo. Você sabe que ele é um homem bastante ciumento e isso pode acabar trazendo uma porção de problemas para a minha irmã.”

“Sabe de uma coisa, Márcio? Acho que vou fazer bem mais do que simplesmente dedicar essa nossa composição à Heloísa. Vou dar parceria a ela na canção. O que você acha?”

“Acho que você está querendo criar uma confusão sem precedentes com o Téo.”

“Deixa o Téo, Márcio! Ele tem de aprender que Heloísa pode até ser a musa dele. Mas, isso não lhe dá o direito de tratá-la como se fosse uma propriedade sua.”

“E como se chamará a canção, eim, Zinho?”

“O nome da canção será “Blue Angel”.”

“Blue Angel? Anjo Azul? Você só pode estar louco, Zinho! Você quer ser assassinado pelo Téo? É isso o que você quer? Me deixar órfão de amigo?”

“Não exagera, Márcio! O Téo é um sujeito assim, ciumento, meio valentão... Mas, acho que ele não teria coragem de me matar. Teria?”

“Teria sim, Zinho. Eu conheço muito bem o Téo e sei que ele é capaz de tudo para garantir sua posse com relação à Heloísa. Fica esperto, Zinho! Registra a “Blue Angel” como uma composição minha e sua e, quando tiver a oportunidade, conta à Heloísa que fizemos a canção pra ela!”

Foi esse o diálogo que tive com o Márcio quando compusemos “Blue Angel”. Neguei-me a seguir seu conselho e isso me trouxe amargas conseqüências.

No dia seguinte ao da composição de “Blue Angel”, fui bem cedo à casa do Téo, mostrei-lhe a canção e informei-lhe da minha intenção de ofertar parceria a Heloísa, uma vez que havia sido ela sua principal inspiração.

Téo não me agrediu fisicamente. Todavia, o olhar por ele volvido a mim trazia consigo todas as agressões possíveis.

Era um olhar ameaçador. Um olhar em que se liam claras promessas de assassinato.

Ao olhar, seguiu-se uma ordem bastante expressa. A ordem de que eu jamais voltasse a me dirigir a ele ou a Heloísa.

Respondi-lhe que, quanto a ele, podia ficar sossegado, pois nunca mais voltaria a procurá-lo, mas, quanto a Heloísa, ele não podia dar-me nenhuma ordem, já que a vida dela não pertencia a ele. Heloísa era uma mulher livre. Não era sua propriedade. Tinha, portanto, o direito de falar com quem ela quisesse e de ser procurada por quem ela quisesse.

Disse-lhe ainda que não o temia, que amava Heloísa e que a merecia bem mais do que ele, que sequer sabia como tratar uma mulher.

Possesso, Téo expulsou-me, aos gritos, de sua residência e, depois disso, por um longo tempo, não nos tornamos a ver.

Como os prezados leitores já sabem, Téo e Heloísa não participaram das gravações do long play adicional de “Silver Soul. “Blue Angel”, porém, teve sua autoria creditada a Márcio Krigher, a Heloísa Krigher e a mim (Elíseo Giardinni), integrou, em versão reduzida, o repertório de “Silver Soul” e teve, segundo informação a mim transmitida por posterior intermédio de Lucila, sua versão integral lançada, em compacto simples, no ano de 1976.

Terminado todo o processo que culminou com o lançamento oficial de “Silver Soul”, regressei rapidamente ao Brasil, pois a tournée de “O Espírito De Prata” precisava ser urgentemente retomada.

Nos shows que se seguiram, por não encontrar um substituto para Téo, tive de assumir sozinho o contrabaixo.

Também não foi encontrado um substituto para Heloísa, o que nos obrigou a modificar os arranjos das canções, suprimindo-lhes a flauta.

Passados dez dias do meu retorno ao Brasil, fiquei sabendo, através do Márcio, que Heloísa e Téo estavam de casamento marcado para dali a um mês. Notícia que me abalou profundamente.

Deixei, transtornado, a casa de Márcio, que, em respeito à dor que me consumia o espírito naquele árido instante, não deteve a minha saída.

“Não vai acontecer nada!” – falou Márcio a si mesmo. – “O Zinho é um homem pacato, equilibrado, pacífico e sensato! Não fará nada que fira o Téo ou que magoe a Heloísa!”

Felizmente, Márcio estava coberto de razão.

Téo merecia ser ferido. Mas, não cabia a mim ferí-lo.

Heloísa era – e ainda é – o primeiro e único grande Amor de toda a minha vida. Magoá-la, portanto, para mim, estava totalmente fora de qualquer cogitação.

Pensei em ir até a residência de Heloísa e declarar-lhe, em alto e bom som, todo o meu Amor por ela. Pensei em raptá-la e fugir com ela para algum lugar onde ninguém nos conhecesse. No entanto, não fiz nada disso.

Pus-me a caminhar a esmo pela cidade que me viu nascer. Passei pelo Antares, pela casa dos Ferrari, pelo salão do GKF...

Cruzei cada rua, até me cansar e voltar para casa. Para a mesma casa em que, cerca de duas décadas depois, minha filha Lucila me abrigaria e, posteriormente, me receberia como seu pai.

Quando eu já me encontrava dentro de casa, deitado em minha cama e pronto para adormecer, surpreendi-me elevando a Deus uma prece emocionada, na qual eu agradecia a Ele pela graça de possuir um teto.

A última coisa que fiz naquele dia, antes de dormir, foi imaginar o que seria de mim se eu fosse um andarilho, se eu tivesse de entregar meu corpo ao sono sob a tímida proteção de uma marquise.

Hebane Lucácius