Caminhos tortuosos - Capítulo II

A vida foi passando e a rotina da família continuava na mesma. O avô de Arnaldo contraiu câncer no estômago, foi definhando aos poucos e sem cuidados médicos veio a óbito. A mãe engravidou e nasceu uma linda menina. O padrasto ficava a cada semana que passava mais impaciente. As vezes saia no sábado à noite e só retornava na segunda-feira, sem nada e bêbado. Por diversas vezes tiveram que dormir sem jantar.

— Mãe, já tenho 18 anos — Disse Arnaldo numa certa noite de sábado quando Zé Picão não estava em casa — posso muito bem cuidar de vocês duas. Deixe esse homem e vamos embora.

—Embora para onde? Ele é meu marido e pai de sua irmã, é difícil criar um filho sem pai.

Ambos ficaram calados. O silêncio foi quebrado pelo choro de Aninha no quarto. Elielza foi acudir a menina e Arnaldo foi junto.

— Mãe, prestei o ENEN e passei para fazer faculdade.

— Mas o que adianta? Não temos dinheiro e por essa região não tem faculdade.

Depois de ouvir essas palavras que foram como um canivete penetrando seu peito, foi para o quintal. A casa já tinha melhorado, haviam conseguido através de um projeto do governo puxar luz elétrica, a cobertura já não era mais de cavaco e sim de telha. Tinham uma televisão, uma geladeira. Arnaldo deitou-se em um banco que ficava próximo a porta da cozinha, ficou olhando o céu, estava estrelado e com uma lua bem gigante no meio deixava a noite prateada.

A essa altura, Janina e Arnaldo começaram a namorar. Encontravam-se sempre as noites:

— Janina eu passei no ENEM.

— Que bom.

— Passei para filosofia.

— Em qual instituição?

— UnB.

— Onde fica?

— Pelo que pesquisei fica em Brasília. Mas não sei se irei. Não terei como custear. Lá, possivelmente poderei encontrar meu pai.

— Mas você nem o conhece, ele, provavelmente, pelo que você me falou nem deve saber que você existe.

Um suspiro longo fez-se ouvir de Arnaldo. Os dois se abraçaram e ficaram trocando carícias na noite de luar, ouvindo o cantarolar de um bando de arancuãs.

No dia seguinte, Loro e Arnaldo haviam marcado uma pescaria no rio Guamá. Era no sábado, saíram bem cedo.

— Sabe — disse Arnaldo — Não estou suportando ver meu padrasto maltratar minha mãe. Ele chega bêbado em casa...

— Mas ele continua batendo nela?

— Não. Desde que o enfrentei e dei uns murros nele, parou. Mas maltrata de outra maneira. Some no sábado e retorna só na segunda.

— Égua, Arnaldo, você é muito mole, se fosse eu...

— O que faria?

— Já tinha matado um filho de uma égua desse.

Arnaldo passou os próximos dias pensativos. As vezes na roça, parava de trabalhar e ficava olhando o seu padrasto. A coisa ficou mais tensa quando em uma noite após vir da visita da casa de Janina pegou o padrasto batendo em Aninha.

— Sai daqui seu desgraçado — Disse furioso tomando a menina das mãos do padrasto.

— É o que dá criar um filho de boto, seu merda — Zé Picão estava cuspindo fogo pela boca — Olha aqui, trabalhei duro para te criar e é assim que me trata, me respeite...

A mãe tomou a filha nos braços e saiu chorando para o quarto, os dois continuaram a briga na sala:

— Se eu pegar você batendo na minha irmã de novo, juro que não responderei por mim.

— Você está me ameaçando, é isso mesmo?

— Entenda como quiser, o aviso está dado. Se você voltar a encostar em um fio de cabelo dela, você verá do que seu sou capaz. E isso serve também para a minha mãe.

Depois dessa briga, os dois pouco se falavam. Arnaldo deixou de ajudar na lavoura. Começou a trabalhar em diárias em algumas fazendas que existiam na região. As vezes passava a semana toda fora, retornava apenas no sábado. Confessou para Janinha o que pretendia fazer de sua vida:

— Vou embora, Janina, essa vida não está dando para mim.

— Mas você vai para onde?

— Consegui juntar umas economias aí. Irei embora em busca de estudo. Vem comigo?

Ela se assustou com tal convite. Nunca pensara em sair dali. Gostava da vida simples que levava na roça, achava que não conseguiria viver em outro lugar. Longe dos pais, do irmão e da mãe. Seus olhos azuis encheram-se de lágrimas e um sorriso tímido saiu de seus lábios carnudos.

— Vai me abandonar, e sua mãe, sua irmã, terá coragem de deixá-las na situação em que estão?

— É uma decisão difícil, mas terei que ir, as vezes tenho vontade de matar aquele maldito.

Na semana seguinte, Loro e Arnaldo passaram torrando farinha. Pretendiam vender a mesma e dividir o dinheiro meio a meio. Era quinta-feira quando terminaram o serviço. Na sexta-feira aproveitaram para realizar uma caçada. Embrenharam-se na mata, cada um com uma espingarda, caçaram o dia todo.

No sábado da mesma semana, Janina e Arnaldo, marcaram de se encontrarem as escondidas ao meio-dia no igarapé. O igarapé ficava nos fundo do terreno da família da moça. Arnaldo dirigiu-se apressado e ansioso por um caminho aberto na mata, que ele mesmo havia feito para se encontrar outras vezes com ela. Quando se aproximava escutou gritos de socorro. Reconheceu a voz, era Janinha e estava sendo forçada a fazer algo. Correu apressado.

Ao chegar à margem do igarapé viu de longe ela tendendo se desgarrar das mãos de um homem. Ao se aproximar, percebeu que a roupa dela estava rasgada, e que chorava muito e estava com a voz cansada de tanto gritar. Reconheceu a roupa do homem. Era Zé Picão. Chamava-a de vadia e batia nela.

Arnaldo gritou ao perceber do que se tratava. Zé Picão olhou assustado ao ouvir o grito do rapaz. Saiu de cima da moça, porém, Arnaldo agarrou em seu pescoço e o puxou com violência, dando um soco na cara, falou furioso:

— Seu filho de uma égua, agora eu acabado com a tua raça.

O soco foi tão violento que Zé Picão caiu no chão atordoado. Estava porre, olhos vermelhos. Levantou-se, pegou uma faca que estava perto e partiu para cima de Arnaldo, Janinha estava desmaiada no chão, com parte do corpo dentro d’água. Zé Picão estava sem muitas forças, ao tentar perfurar Arnaldo, foi desarmado pelo mesmo. Foi pego pelo pescoço, levantado, e levou um soco no estômago e outro na cara. Ao cair, bateu a cabeça em uma pedra. Ao se aproximar, Arnaldo percebeu que ele respirava com dificuldade e sangrava muito, a batida da cabeça na pedra abriu uma fratura.

Correu até Janinha, a mesma, ia tomando consciência aos poucos. Olhou para o outro estirado no chão, todo cheio de sangue e perguntou:

— Você o matou?

— Acho que sim. Mas o importante é que você está bem.

— Se ele morreu é melhor você fugir.

Abraçando-a fortemente, ambos choraram. Os olhos de Arnaldo demonstravam o tanto de ódio que sentia. Depois de verificarem se ainda tinha vida, foram embora do igarapé. Passaram na casa da moça, onde ela ficou.

— O que aconteceu? — Loro perguntou admirado.

Contaram-lhe tudo o que havia acontecido. Loro, revoltado, quis ir até o local dar cabo da vida ou ao menos confirmar se tal diabos havia de fato morrido, mas depois de muito conversarem, Arnaldo o convenceu resolver as coisas de cabeça fria.

Já era tarde da noite quando chegou em casa. A mãe percebendo o nervosismo do rapaz, indagou:

— O que aconteceu que você está nervoso, menino?

— Não foi nada. A senhora saberá logo, logo!

— Pelo amor de Deus!

— Tudo bem, eu estava....

Ao ouvir toda a história, Elielza ficou estarrecida.

— Meu filho — puxou para junto de si e deu-lhe um forte abraço misturado com lágrimas.

— Tenho que ir embora, não suportarei mais ficar aqui. Vamos, mãe?

— Mas para onde? Vamos assinar tua culpa na morte dele.

Ambos ficaram acordados até tarde da noite pensando em como sair dessa situação. Estava luar, o galo deu o primeiro canto da madrugada. Aninha começou a chorar, depois de acudi-la, a mãe volta para junto do outro:

— Vá embora, e se ele não morreu e voltar para se vingar de você, e se de fato estiver morrido, você correrá o risco de ser preso por assassinato.

— Mas e vocês duas? E se ele não tiver morrido e querer se vingar em vocês...

— Fique calmo. Ele é violento, mas não fará nada conosco. Arrume suas coisas e vá embora até a poeira baixar.

Depois de mexer em uma caixa de papelão que estava encima de um velho guarda-roupa, pegou uma pasta, tirou umas notas de dinheiro e deu ao rapaz.

— Tome, isto é tudo que posso te dar.

— Não posso aceitar, mãe. Vou embora sim ao raiar do dia, mas não levarei seu dinheiro.

— Fique tranquilo, dentro de poucos dias sairá o bolsa família. Esse dinheiro foi seu avô que deixou. Disse para usá-lo em caso de necessidade, e não vejo necessidade maior que essa.

Arnaldo pegou a quantia, nem conferiu. Arrumou suas poucas roupas dentro de uma mala velha. O dia estava próximo, abraçou fortemente sua mãe que não escondia a profunda tristeza que sentia. Foi a rede onde a pequena Aninha dormia um sono pesado, parecia um anjo. Acariciou sua face, beijou-a, e deixou uma lágrima molhar suas delicadas mãos. Voltou a sala onde sua mãe, não aguentando mais, chorava sem parar.

Já na porta de saída, mais um abraço forte. Disse suas últimas palavras:

— Juro por Deus, por Nossa Senhora de Nazaré e por São Benedito, que voltarei para buscar vocês duas. Quem sabe posso encontrar meu pai, nesse imenso mundo.

— Deus te abençoe!

O dia já dava seus sinais, e na vida de Arnaldo eram as trevas que o esperavam. Soltando devagar a mão de Elielza, foi se afastando aos poucos na estradinha de chão que terminava na curva depois da cerca.

Assis Silva

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Assis Silva
Enviado por Assis Silva em 16/03/2018
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