AS TRÊS MARIAS - capítulo 08 - E ANA NÃO CONSEGUIU FICAR

Ana logo apareceu na cozinha, presenciando sua mãe e Cíntia abraçadas, chorando.

- Pelo jeito, andaram rolando algumas confissões por aqui, hein?

- E você já sabia de tudo, né? Acho que sou a mais problemática, para enfrentar novidades.

- Nada disso, maninha. É que convivo com nossa mãe e já me acostumei.

Nesse momento, Berta chegou, ainda sonolenta e se surpreendeu com o chororô.

- Já se acostumou com o quê? Que choradeira é essa? Aconteceu algo que não sei?

- Calma! A mãe contou algumas coisas pra Cíntia, que motivaram as lágrimas. Acho que é conveniente que você também esteja ciente de toda a história. Sente aqui, que a coisa é séria.

Francine repetiu seu relato, enfatizando a paternidade de Lélio e seu falecimento. Berta não movia um músculo sequer, concentrada em ouvir cada detalhe, e mesmo que seus olhos úmidos traíssem a emoção, evitou entregar-se ao choro como a irmã. Após algum tempo de silêncio, meio constrangedor, Ana tomou a iniciativa de arrumar a mesa para o desjejum.

- O que você pensa de tudo isso, mesmo estando mais próxima do convívio com a mãe?

- Olha, Berta, até estranhei um pouco quando soube, mas depois do que passei, e tendo de enfrentar a realidade diária de ser soropositiva, tomar tanto remédio e muita cautela, no sentido de evitar que Ingrid tenha sua saúde prejudicada por minha causa, resolvi não dramatizar, porque a vida é frágil, curta, e preciso concentrar minha energia em viver da melhor forma possível.

- E a síndrome está sob controle?

- Minha imunidade varia de nível o tempo todo. Os médicos dizem que tanto posso viver muito, sem surpresas, quanto ter uma crise violenta, repentina. Não dá pra prever. Vivo cada dia como se fosse o último, até onde isso é possível, e já me acostumei a não fazer muitos planos.

O silêncio voltou a incomodar, sem que qualquer uma das presentes soubesse o que dizer ou fazer, para romper o vazio que tomou conta das mentes, frente a tanta verdade nua e crua. Só quando Sal surgiu na porta, dando bom dia e dizendo que todas estavam com cara de fome, é que houve a quebra do mutismo, e sua substituição por risos e uma suave confraternização à mesa.

O que não foi dito, por Ana ou sua mãe, é que Ingrid, além de sócia e namorada, também era enfermeira padrão, e antes de se envolver com a menina, fora contratada para atendê-la, quando ocorrera crise muito profunda, que a prostara por quase seis semanas. Também evitaram contar que o prognóstico, em relação ao mal, não era dos melhores. Vários médicos consultados, concordaram que o metabolismo de Ana não estava reagindo adequadamente, e as variações do nível de imunidade, cada vez mais frequentes e intensas, não davam margem a muita esperança.

Francine e a filha sabiam que não havia o que fazer, que a vida se esvaía daquele corpo jovem com relativa rapidez, e que, ao invés de anos ou meses, o tempo restante só podia ser contado em dias, ou no máximo, semanas. Ao mesmo tempo em que tinham vindo, atraídas pelo momento crítico, vivido por Cíntia, apenas anteciparam em alguns dias a viagem já programada, pois pretendiam estar reunidas por mais algum tempo, aguardando o inevitável desenlace, na terra de origem, todas juntas, pois o que havia por enfrentar, exigia muito.

Ao longo dos dias seguintes, permaneceram todas juntas, o máximo de tempo possível. Foram dias prazerosos, de compras, passeios, curtição, e só depois de quase um mês, Ingrid teve de intensificar cuidados, porque Ana definhara tanto, que já não conseguia quase andar. Foi então que Berta, Cíntia e Sal começaram a entender a situação. Não houve questionamento, não se falou muito sobre o que ocorria, mas todos, intuitivamente, ajudavam a compor o ambiente, de forma a amparar e amenizar o mal estar. Aos poucos, a constatação inequívoca de que aquela vida, comprometida e vacilante, caminhava para a morte, se fazia presente na mente de todos.

Pouco depois, foi necessário transferi-la para um hospital, onde o trespasse ocorreu em breves horas. Toda a comoção, envolvendo família e presentes, foi contida, como se a tristeza estivesse embutida, sem forças para se exprimir com força e paixão. Apenas um silêncio choroso.

Ao voltarem para casa, Francine reuniu todos à sua volta e revelou que não mais voltaria à Europa, pois não queria se afastar das duas filhas, após ter enfrentado tanta perda. Ingrid pediu para ficar, porque se afeiçoara à família e Sal foi convidado a se mudar para a casa, juntando-se àquele grupo, que aprendera, da pior maneira, a valorizar a união, mesmo na adversidade.

nuno andrada
Enviado por nuno andrada em 24/06/2016
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