AS TRÊS MARIAS - capítulo 07 - DOIS PAIS PARA AS TRÊS

Foi uma noite especialmente gostosa, de muito papo, muita recordação e brincadeiras.

O ápice da curtição ficou por conta da decisão de todos dormirem juntos na sala. Para isso, afastaram os móveis, espalharam colchões e edredons pelo chão, e organizaram a bagunça. Mas, dormir que é bom, só depois de mais um bom tempo contando causos antigos e rindo a valer.

O sol despontou sorrateiro, na vidraça da janela, esticando uma nesga de seus raios, até atingir a face de Cíntia, que acordou em meio àquele amontoado de gente. Até Sal ressonava a um canto, esparramado e agarrado ao pé da poltrona. Riu da cena, levantou e foi à cozinha, para verificar a origem do cheiro bom que lhe chegava às narinas. Deu com Francine, preparando café e bolinhos de chuva. Lembrou-se de Vó Dulce, que gostava de agradá-las com essa guloseima.

- Perdeu o sono ou sentiu fome, mãe?

- Dormi pouco, sim, mas porque fiquei pensando em termos uma conversa, eu e você.

- Puxa vida! Pra querer conversar logo cedo, deve ser coisa séria.

- Pode apostar que sim, e não é algo fácil de transmitir, mas a verdade tem de prevalecer.

- Estou ficando preocupada. É melhor dizer tudo de uma vez.

- Vim pra cá pensando no pior, quando me disseram que você tinha surtado, e o que mais me incomodava, além de não perdê-la ou ver sua saúde comprometida, era não poder revelar o que guardei em meu íntimo, durante muito tempo, mesmo antes de seu pai falecer.

- Isso tem algo a ver com ele?

- Tem sim. Ele era um homem muito doente, e descobriu que estava condenado a uma vida curta, poucos meses após nosso casamento. Como eu não engravidava, nós dois fizemos vários exames, e aí foi descoberto o tumor que o tornara estéril, e o mataria, anos depois.

- Como ele poderia ser estéril e ter três filhas?

- Eis a principal revelação. Tanto ele quanto eu, até aquela época, só falávamos em filhos e família grande, mas os médicos foram enfáticos em dizer que não havia a menor possibilidade, nem mesmo de utilizar seu esperma, pois seu organismo já não mais o produzia. Após alguns dias de tristeza e muita choradeira, ele chegou em casa, acompanhado de um amigo. Só que esse tal amigo tinha sido meu namorado, antes de eu e seu pai nos aproximarmos. Era uma pessoa muito bacana, com quem eu tinha vivido um período intenso, na adolescência. Por intermédio dele é que me tornei mulher, como se diz, normalmente. Tive com ele minha primeira relação sexual.

Cíntia permanecia de olhos arregalados, como que hipnotizada pela revelação.

- Seu pai viu nele a solução (mesmo que insólita) para nosso problema. Fiquei horrorizada com a ideia, mas conversamos tanto, e a pessoa escolhida era tão afável e cordata, com quem eu sempre tivera só coisas boas, que acabei cedendo e concordando com o plano. Lélio, esse era seu nome, fazia o possível para que eu não me sentisse constrangida, e após proporcionar-me as três concepções, afastou-se, cordialmente, visitando-nos apenas esporadicamente.

- Então tio Lélio é nosso pai biológico?

- Sim. Após alguns anos aparecendo como seu tio, ele resolveu ir para o exterior, por sentir muito apego por vocês, Foi viver na França, como representante do pai, um vinhateiro famoso em Portugal. Após a morte do pai de vocês, resolvi encontrá-lo e, aos poucos, convencê-lo a retornar e se apresentar às suas filhas, dizendo o que lhe digo agora. No entanto, encontrei-o vivendo só e doente. Estava, precocemente, envelhecido, e após pouco mais de um ano, também se foi.

- Perdemos dois pais, sem nem conhecê-los melhor. Por que isso?

- Foi muito difícil para mim. Seu Alonso, pai de Lélio, tinha perdido sua esposa há pouco, e acabamos nos consolando, mutuamente, viajando por Portugal e conhecendo os locais de origem da família. Ao longo dos anos, nossa amizade foi se tornando algo mais íntimo e sério, e hoje nós dividimos o mesmo teto, minha filha. É muito complicado lhe dizer tudo que lhe digo.

- Mas, mãe! Esse senhor deve ter idade para ser seu pai.

- Vinte e um anos a mais, mas é um companheiro atencioso, amável e presente.

- O que você espera que eu diga, depois de ouvir tanta coisa perturbadora?

- Que vai tentar entender, que não se oporá e que podemos conviver sem problemas.

Cíntia nada disse. Apenas abraçou a mãe, chorando muito. Era, porém, um choro benigno.

nuno andrada
Enviado por nuno andrada em 19/06/2016
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