AS TRÊS MARIAS - capítulo 02 - UMA AVENTURA INFELIZ

Por mais alguns anos houve relativa paz na vida das meninas, mas pouco após Ana, a caçula, completar dezenove anos, Vó Eloá se despediu da vida e foi descansar no céu dos justos. Por essa época as garotas viviam na casa paterna, juntas, e uma vez ao ano, se muito, recebiam a visita da mãe, que permanecia por ali alguns dias.

Vó Dulce andava doente, exigindo cuidados, e por esse motivo acabou indo morar com suas netas, que lhe dispensavam o máximo de atenção. Já eram adultas e administravam suas vidas, cada uma a seu jeito. Cíntia cursava o último ano de economia, estagiava em empresa de médio porte e ganhava o suficiente para seu sustento. Berta optou pelas belas artes, além de um curso paralelo de teatro, que levava muito a sério. Seu talento artístico era indiscutível, e o único porém, era que necessitava fazer bicos vários para conseguir subsistir. Ana, há pouco mais de um ano entrara numa escola de jornalismo, mas estava sempre às turras com suas irmãs, que a advertiam sobre dedicar-se mais ao estudo, vez que preferia faltar às aulas, para frequentar comícios, piquetes, passeatas e outras manifestações do gênero. Seu jeito radical já lhe havia trazido dissabores com as autoridades, empregadores, educadores, mas insistia em permanecer contrária a tudo e todos, sem ao menos ter um foco preciso. Só o que importava, era confrontar-se com o que considerava convencional, pleiteando até o impossível.

Três mentes que divergiam muito, mas se queriam e tentavam se entender.

Francine tentava compensar a ausência continuada, enviando boa soma de dinheiro para as filhas, mas Ana e Berta se recusavam a por a mão na bufunfa, porque acreditavam em batalhar pelas necessidades, e também porque não viam com bons olhos aquela dependência.

Cíntia também preferia não usar o dinheiro, mas tinha o cuidado de depositá-lo, para o caso de alguma emergência e necessidade da Vó Dulce. Mesmo que as duas irmãs mais novas buscassem sua independência, o que ocorria, de fato, era que nunca conseguiam grana suficiente, sequer para o básico dos básicos, então a primogênita se apertava, para fazer com que seu dinheiro desse para tudo, sem deixar que as outras percebessem muito o aperto.

Vez em quando, o nervosismo advindo da escassez, provocava pequenas discussões, mas nada abalava a união fraterna, até que aconteceu de Ana desaparecer por uns dias. Era comum ausentar-se do lar por algum tempo, mas passada uma semana, a preocupação piorou. Telefonemas, pequenas investigações de praxe, nada surtia efeito; até que surgiu uma pista estranha, indicando que ela poderia estar em propriedade rural de outro estado. Apenas um pedaço de papel, convidando-a para um treino de guerrilha, amassado e desbotado, achado no fundo de uma bolsa velha, largada no quartinho da bagunça da casa. Foi uma surpresa.

Cíntia ficou cuidando da vó, enquanto Berta juntou alguns amigos e seguiu para o local indicado, mas ao chegar em uma casa semi destruída de pequeno vilarejo interiorano, verificou que os moradores não queriam muita conversa. Desconfiada, acionou a polícia local, contando o que tinha de indícios. Ainda que a contragosto, o delegado acompanhou Berta e seus amigos até a casa, encontrando-a vazia, parecendo ter sido esvaziada às pressas. Inquirindo vizinhos, o policial conseguiu a placa do caminhão que carregou tudo, e avisou a polícia rodoviária das redondezas. Em menos de uma hora já estavam com o veículo apreendido e seus ocupantes detidos, por porte de armas e dinheiro falso. Não foi necessário interrogá-los muito, para saber que havia, realmente, um sítio, nas proximidades, onde se desenvolviam atividades ilícitas.

Foi uma grande operação policial, a invasão do lugar indicado, onde se achou trabalho escravo, drogas, armas e várias mulheres seviciadas, entorpecidas, semi conscientes. Entre elas estava Ana, desfigurada, esquelética e quase irreconhecível. Não reagia a nada.

Levada, primeiramente, a um hospital da região, foi transferida para a capital, para um centro clínico melhor equipado, pois seu estado era crítico. Muitos hematomas, escoriações, um tímpano perfurado, dentes quebrados, vértebras trincadas, leishmaniose e, após diversos exames, o diagnóstico definitivo de soropositiva. Estava com AIDS.

Foram dois meses de internação, em que se revezaram ao seu lado as duas irmãs, uma semana cada. Ambas largaram seus afazeres para tal, e ao cabo desse tempo Ana foi levada de volta ao lar, ainda em estado de parcial alienação, apática, olhos fundos, magreza enorme, ombros encurvados, sem ânimo sequer para uma leve conversa. Berta e Cíntia choravam às escondidas, mas não iriam desistir de trazer a mana de volta à vida, mesmo que isso custasse seus projetos, seus sonhos ou oportunidades. Elas a amavam, e isso era o mais importante.

nuno andrada
Enviado por nuno andrada em 11/06/2016
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