JACK VILLE - CAPÍTULO II - A SOLENIDADE

JACK VILLE

Capítulo II

A solenidade

Foi assim, na velha estação de trem, que começou a brotar nos garotos a semente da grande aventura de sair pelo mundo, viajando de carona pelo país.

- Um dia desses a gente podia por o pé na estrada também! - Temos que sair por ai, antes da gente terminar o colégio!

- Daqui uns dias, essa moleza vai acabar e cada um vai pegar um rumo!

- Pode crer! Essa vagabundagem vai acabar e vamos ter que arrumar um emprego!

- Cara meu pai tá muito puto comigo!

- Rapaz, tô sujo em casa!

Essa era a conversa de todos. De certa forma se sentiam pressionados, na família, na escola e na sociedade. Não entendiam muito bem o contexto da estrutura social e onde deveriam se encaixar nessa engrenagem. Só sabiam que mais cedo ou mais tarde, cada um seguiria o seu caminho na vida. Detalhe: “Jovens rebeldes, perdidos, confusos e alienados vivendo em pleno período da “ditadura militar”. Ouvíamos falar disso, mas era longe muito longe de todos nós. Uma vez ficamos sabendo que um tal de Claudionor, estudante da USP era comunista e a polícia estava atrás dele. Diziam que ele pertencia a uma organização terrorista, um grupo armado com metralhadoras e que lutavam contra o governo. Mas nem se ligava pra isso. A gente achava que o cara era um bandido, que assaltava bancos e matava as pessoas, depois desaparecia.

Um dia na praça, se não me falha a memória acho que era o ano de 1972, ali por volta das 8:00h da manhã, devia ser sete de setembro, pois estávamos na praça da matriz, todos enfileirados, as escolas todas perfiladas. Havíamos desfilado pela avenida principal, ao som da fanfarra da escola tocando aquelas cornetas desafinadas e o surdo marcando o tempo forte, no nosso pé esquerdo. Mão no peito cantando o Hino Nacional, no hasteamento da bandeira, todos seguindo as formalidades do protocolo. O prefeito, o delegado e muitos militares, tanto da força pública quanto da marinha, não esquecendo o diretor da escola e todos os professores e professoras em posição de sentido, numa demonstração de espírito cívico e respeitoso. Eis que no meio da solenidade, quando o comandante da marinha estava discursando: “Caros alunos, todos vocês representam o Brasil de amanhã, o futuro da Pátria, o país conta com a juventude brasileira”... Luc solta um tremendo peido fedorento e todos começaram a rir e a fila desandou, saiu do alinhamento. O comandante interrompeu a fala e perguntou: - O que está acontecendo? Alguém gritou – Soltaram um peido fedorento aqui! Ai foi uma desordem total e a bagunça foi geral e pra disfarçar a bandinha do coreto começou a tocar um dobrado e “a emenda foi pior que o soneto”, porque a tuba ficava marcando o compasso assim: Pum, pum, pum... Ai que a turma ria mais ainda, de gargalhada. O diretor ficou horrorizado e as professoras ficaram todas impactadas. O diretor gritava: - Seus moleques sem educação! Voltem aqui todos vocês! Depois de muito custo os professores e inspetores de alunos conseguiram por ordem na casa e a solenidade transcorreu normalmente. O saldo disso foi que no outro dia, fomos chamados na diretoria e uma retaliação do diretor estava preparada, ele tinha que mostrar autoridade, não nos perdoou, pois fomos delatados e acusados de causar aquela desordem. Enfim, alguém precisava ser punido. Suspensão de três dias e assinatura no livro negro pra todos nós. O estranho foi que neste mesmo dia, depois das comemorações, ao lado direito do coreto, um sujeito alto, cabeludo e de barba, parecido com o “Che Guevara”, vestindo uma jaqueta verde, tipo do exército, carregando uma mochila nas costas, estava falando com o Luc. Chegamos perto deles, curiosos como sempre, nunca tínhamos visto um tipo daqueles. Lembro-me que o Roman ficou impressionado com aquela figura. Chegamos a pensar que o cara era o Claudionor, aquele comunista, ladrão e assassino, assaltante de banco. Depois de certo tempo, foi que o Luc falou: Esse cara é um “hippie”! – O que é um hippie? Perguntou Roman – São uns caras que pregam “paz e amor”, são cabeludos e não tomam banho. Eles vivem na estrada viajando de carona, pelo país inteiro, gostam de rock e são livres como o vento, vão pra onde quiserem! O Luc disse que foi isso que o sujeito cabeludo falou pra ele.

Acho que foi a partir desse episódio, que o Roman tomou consciência de que a onda dele seria a liberdade, a música e a literatura. Começou a ouvir “Beatles e Rollings Stones” e começou a falar de “Woodstock” um festival de rock que tinha acontecido nos E.U.A, onde milhares de pessoas ficaram três dias e três noites ouvindo músicas e protestando contra a guerra do Vietnã e pregavam paz e amor. Ficava horas tentando tocar de ouvido, as músicas do “Crosby, Stills and Nash” (Marrakesh Express). Quando assistiu “Easy Rider” então, pirou, só falava da trilha sonora desse filme, furou o LP do Dário outro amigo nosso. Desde então ele sempre estava na biblioteca municipal, lendo de Herman Hesse a Shakespeare, passando por Fernão Capelo Gaivota chegando a Aldous Huxley no Admirável Mundo Novo e desembocando em On the Road de Jack Kerouac. Havia uma moça solteirona, cabelos pretos curtos com franjas, rosto redondo cheio de sardas e um enorme par de óculos de lentes garrafais, que lhe davam aquele ar professoral, parecido com aquelas corujinhas que simbolizam o saber, chamava-se Antônia, era a bibliotecária. Por incrível que possa parecer, estava antenada com o mundo da época. Foi a grande mentora intelectual do Roman, indicava vários livros a ele. Os garotos passavam na sua casa, um casarão antigo de madeira, que ficava perto daquela pracinha.

- Oh Dona Josie! O Roman tá por ai? Perguntava o Reno.

- Não! Acho que ele disse que ia à biblioteca.

- Tá bom Dona Josie, obrigado!

- O que esse cara vê nesses livros? Não vejo graça nisso! Dizia o Reno e logo em seguida tendo o apoio do Agenor, que dizia: - Que cara babaca, meu!

- Podes crer, só leio na escola porque é obrigado! Reafirmava o Reno.

O Luc era o único que ainda dizia: - Rapaz, não é besteira não! Vocês é que são duas bestas quadradas. - Vamos pega-lo na biblioteca e descer pro rio! A vida em Jacke Ville se resumia nessas vagabundagens de beira de rio.