A INSTIGANTE ARTE DA VIDA - PARTE XI (A ÚLTIMA PERDA)

(Novela em 14 partes)

Leito de hospital, lençóis e vultos brancos, odores insuportáveis de medicamentos e soluções, seringas, sondas, frascos de soros, monitores e seus ruídos a reproduzirem batimentos cardíacos. Diana acordou assustada:

- O que aconteceu? – perguntou à enfermeira que estava sentada diante de sua cabeceira.

- Foi submetida a um parto de alto risco seguido de uma histerectomia.

Começou a recapitular os fatos, lembrando-se, aos poucos, do que acontecera. Logo voltou-se para o instante presente e perguntou aflita:

- E meu filho, onde está?

A enfermeira, sem nada responder, levantou-se lentamente, regulou o soro e dirigiu-se à porta, dizendo:

- Vou chamar a psicóloga.

A parturiente se afligiu ainda mais! Em seguida, uma mulher altíssima e magérrima, de cabelos curtos, contíguos à nuca, usando óculos minúsculos, de lentes grossas e aros prateados, entrou pelo quarto, dizendo:

- Bom dia.

- Eu quero meu filho!

Cabisbaixa, a tal mulher murmurou:

- Eu lamento muito. Criança prematura, gravidez delicada...

Diana se estremeceu e pôs-se a chorar aos berros:

- Não acredito em você! Eu quero meu filho! Vocês mataram o meu filho!

- Tente acalmar-se, por favor. O parto foi complicado, os médicos tentaram de tudo, mas não foi possível.

E continuando aos berros de revolta e agonia:

- Como acalmar-me? Eu nunca mais poderei ser mãe de novo! Já não tenho nada nesta vida e ainda perco minha única perspectiva! Por que não me deixaram morrer?

- Você tem que ser forte.

- Eu quero ver meu filho.

Trouxeram-lhe a criança morta. Com aquele corpo sem vida, tão pequenino e frágil nos braços, ela viu o inferno. Sacudia com um desespero que ferroava os nervos o natimorto, numa tentativa vã e insana de reanimá-lo. Beijava seu rostinho puro e angelical, vulnerável aos caprichos sádicos e absurdos do demônio. Gritava, lastimava, amaldiçoava! Queria de fato a morte também. Embora com muita dificuldade, retiraram-lhe o pequeno cadáver dos braços.

Ela estava em choque, como se envolvida num emaranhado de nós, como se ela própria fosse um nó. Num segundo, parou de chorar, parou de gritar e pensou: “o que mais há de me acontecer?”. Esticada sobre a cama, os olhos arregalados fitaram o teto, transpassaram-no e atingiram um infinito negro. Por mais uma vez, perdida no mundo, perdia o mundo! Pleno torpor. Mas retomou-se; manifestações histéricas nada resolveriam.

A assistente social entrou e, percebendo sua relativa retomada de controle, entregou-a uma bolsa com alguns pertences pessoais e um envelope contendo um cheque e uma carta; em seguida, deixou-a só. Meio fora de si, meio fora dali, apanhou a tal carta, desdobrou-a e iniciou a leitura, apesar de as letras se entrelaçarem à sua frente, provocando incômodo estorvo:

“Cara Diana.

Sei que no momento deve estar tomada por uma profunda indignação, ou talvez nem haja espaço em suas emoções para a perplexidade que os últimos acontecimentos sugerem; sei que não está sendo fácil assimilá-los. Sinceramente não queria que fosse assim. Contudo, devo frisar que jamais poderia assistir inerte ao que ocorria entre você e Renato. Como sabe, cuido dele há vários anos e para mim, sua realização profissional, sua felicidade são questões de honra. Com você, tudo se tornaria mais difícil, senão impossível. Lamento pela morte da criança, lamento mesmo, pois afinal, era também filho do meu primo. Mas você ainda é jovem, poderá engravidar-se novamente.

Desconsidere a certidão de casamento, ela não possui teor legal; você continua solteira, livre para fazer de sua vida o que bem quiser. Longe de nós, obviamente.

Será inútil tentar nos procurar, pois ainda hoje estamos embarcando, Renato e eu, para a Europa (sim, ele irá expor suas obras em oito países diferentes! Não é ótimo?) e quanto a Celso, você jamais irá revê-lo. É provável que a essa altura, aquele golpista já esteja bem longe.

Ah, não sei se lhe interessa saber, mas Renato está imensamente empolgado com a viagem. Está feliz, confiante, sempre sorrindo. “Um sonho” lhe proporcionou uma considerável quantia em dólares e muita fama! Tenho que reconhecer que de alguma forma você foi útil para meu primo. Decidi não lhe contar a verdade sobre a criança.

Seja feliz.

Virgílio.”

Ao concluir a leitura, Diana, embebida em torturante revolta, rasgou furiosa a carta em pedaços minúsculos, como se quisesse reduzir a ela, seu remetente e todo seu passado a uma mera nuvem de poeira a se dispersar pelos corredores infectados do hospital. Depois, fitou o cheque com desprezo faiscante. Não se contendo, destruiu-o também. Por uns segundos se arrependeu, poderia ter usufruído daquele dinheiro como sendo uma indenização por todos os danos e perdas sofridos; afinal, excluindo-se o relacionamento com Renato, só acumulara derrotas e frustrações desde que chegara a Belo Horizonte. Mas logo reconheceu ter agido da maneira mais correta. Não queria vestígios daquela fase.

Depois de sair do hospital e enterrar o filho (todas as despesas e burocracias já haviam sido providenciadas por Virgílio), lá estava novamente a mulher sem rumo, sem perspectivas, sem nada. E chorou, chorou muito! Revoltou-se contra o mundo e sobretudo contra si, que teve um projeto de felicidade bem desenvolvido e já em operação ao seu alcance, e colocou tudo a perder por um egoísmo disfarçado de amor em excesso. Não sabia o que fazer dos resquícios de sua existência. Voltar para o interior talvez fosse o ideal, mas como encarar a todos novamente? Não, não seria capaz. Voltar a implorar por emprego em portas de lojas também não iria. Nada mais havia a perder, estava sem seu amor, sem sua única chance de ser mãe; raízes, nunca possuíra.

Decidiu então: utilizaria de uma vez por todas o seu único e poderoso trunfo, seu grande escudo e simultaneamente, sua grande arma; a beleza magnífica que dominava os homens, que os impunham condições vulneráveis. Pudor, moral? O que conseguira nutrindo (ou tentando nutrir) os tais? Definitivamente, venceria pela perfeição de suas formas! Sim, retornaria à casa de Ana Lara.

Marco Aurelio Vieira
Enviado por Marco Aurelio Vieira em 04/10/2010
Código do texto: T2536601
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