A  índia Apinajé chegou a Campo Grande trazendo  um osso humano numa  aió   amarrada na cintura. Inicialmente, pensou-se tratar da  lembrança de seu  último repasto? A suspeita caiu por terra, no dia  em que, ouvindo Zé Coco executar ‘Saudade de Mirabela’,  a índia acompanhou a música, tocando  com aquele osso, que mais tarde se soube tratar-se de uma cangoeira.


— Que é cangoeira, dona  Edineia?
— Preste atenção, Jerônimo! Cangoeira é flauta indígena, feita com osso de um guerreiro, morto em conflito. O pai de Apinajé. Talvez!
— Cruzes! Bicho porco é índio: pôr a boca em osso de defunto!
— Essa farofa é de quê?
— A senhora sabe que é de tatu.
— Cadáver de tatu, queres dizer.
—  Cadáver humano  é diferente!
— Para índio, não. Pra eles não faz diferença  comer um bispo ou uma sardinha.
— Não gosto de peixe. Prefiro frango caipira com quiabo e mingau de milho verde.
— Também pudera! Nunca arredou os pés de Juramento! Aqui não tem mar. Não me  venha dizer que recusa uma omelete de sardinha?...
— Não como enlatados. Sou mais um feijão tropeiro com torresmo, farofa de andu, ou um tutu, bem feito!
— Peixe é essencial na dieta, por causa do ômega três.
— Entendo essas coisas não!  Como peixe não. Não sei onde ele ciscou. Que andou comendo...
— Sardinha é peixe que vive em águas profundas. Longe de qualquer poluição. O peixe mais saudável, portanto.
— Sei não! Bom mesmo era se banhar no Saracura e caçar tatu nos gerais  de Sete Passagens.
Faz tanto tempo...

Adilson divagava traquinagens da meninice: o banho guardado na bacia do açude construído com toras de aroeira, por mãos escravas, e as matas ribeirinhas do rio Juramento, aonde se escondia com Jerônimo, para ver as meninas se banhando. Elas nadavam vestidas, ainda assim, dava para ver a protuberância rosada  como  pequenos caroços de pitomba, despontados na roupa molhada,  promessa de que na próxima estação chuvosa, lindos seios estariam quase formados, e nunca mais seriam vistos por eles.
— Em qual planeta está teu pensamento, Adilson? Volta pra Terra.
—Apenas refletindo, exercitando a ciência.
— Sobre o quê?
— Sobre um fenômeno que ocorre na puberdade com os meninos. Eles desenvolvem “peitinhos” decorrentes da mudança nos níveis hormonais. E falam com voz de taboca rachada. É muito engraçado. Vez por outra, uma mãe aparece no consultório. Assustada...
— Mas você é ginecologista obstetra.
— A situação é colocada para pedir a indicação de um especialista.
— Vamos mudar de assunto. Sou pedagoga, não médica.
— Desculpe-me, minha Flor.
 Distraidamente, Adilson comenta aquilo que antes estava apenas em suas lembranças.
— João Velho é homem de sorte...
— O quê?
— Euzébia era a menina mais bonita que as águas do Saracura pariram nas últimas décadas.
— Era? Faz quanto tempo que conheces Euzébia
— Desde menina. Nunca  descobri se ela tem olhos verdes ou amarelos.
— Os olhos refletem a cor das vestes.

Fez um muxoxo e continuou.

— Não creio que João Velho seja um homem de muita sorte.
— Ciúme, minha rainha? Raul Soares não gerou, nem as águas do Matipó conceberam e jamais conceberão uma filha que se assemelhe a ti, em beleza, sabedoria e santidade. Eu estava pensando nas meninas que se banhavam no rio  Saracura e Juramento. Coisa dos tempos de menino...
Adilson  guardou para si a lembrança do dia em que dissera a Euzébia: “ Boa sorte com o vaqueiro.”  Naquele tempo, o coração  doeu. Agora dói mais não.

***
Adalberto Lima, trecho de "Estrela que o vento soprou."
Rio Matipó. Imagem Google