O Grito do Sangue

Do alto via o mundo diferente, tudo parecia menor e menos importante, sentia-se leve. No simples assento de madeira ligado por correntes ela podia ser um pássaro, aprendeu a dar impulso com o corpo, puxando o balanço para trás com as pernas bem esticadas e empurrando seu peso para frente. O cabelo emaranhava em seu rosto depois escorria pelo vento. Nunca viu uma criança ir mais alto que ela, imaginava o dia em que iria girar pela haste de metal e ver o mundo de cabeça para baixo.

Mas agora a brincadeira já não era tão divertida, sentada no balanço seus pés arrastavam no chão arenoso, as pedrinhas formavam linhas com o movimento lento do vai e vem do brinquedo. Era muito nova para ter o coração pesado.

Estava resignada a sua nova condição, e apesar de tão pequena, encarava tudo da melhor forma. Seus pequenos pés tocaram a dureza dos fatos e ela seguiu seu caminho. Sozinha.

A cidade era tão grande, com passinhos curtos arrastava as sandalinhas vermelhas pelas calçadas movimentadas, pareciam não nota-la, olhando para cima tentava identificar as pessoas, mas nunca via ninguém conhecido, passava um bom tempo olhando para as mãos dos andantes, queria segurar em uma e ser levada para casa, qual mão seria melhor... Uma mão grande de pai, mão macia de mãe, mão carinhosa e enrugada de vó, a mão dura de calo da tia da escola. Podia ficar o dia todo imaginando o calor do toque de uma daquelas mãos na sua, mas já era tarde, tarde demais.

Os carros já não a assustava, atravessava a rua sem olhar. Os cães já não gostavam dela como antes, sempre latiam, ela devia estar muito suja.

O mundo estava estranho parecia que tinha esticado um pouco.

No beco era assustador e vazio, lembranças ruins jorravam em sua memória como uma cachoeira, já não corria ou saltitava, seguia a passos firmes e mãozinhas cerradas, nos olhos a expressão de uma criança que amadureceu cedo demais.

O lugar fedia a morte, mas era sua única esperança, sua beleza infantil destoava de tudo a sua volta, sentada sobre uma mancha escura no chão de piso bruto a menina queria chorar, mas já não conseguia. Ansiava o dia em que alguém percebesse, alguém ao menos desconfiasse que a chuva não lava todos os resquícios de uma mancha de sangue... Esse era seu único grito por ajuda.

Na pracinha o balanço rangia eternamente num movimento solitário, um vento frio e suave corria a rua movimentada até o beco, no caminho postes ainda exibiam os, já desbotados, cartazes de desaparecidos. Em um deles a garotinha sorri, um riso que ainda soa num passado distante.

Eliane Verica
Enviado por Eliane Verica em 28/12/2015
Código do texto: T5493463
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