É minha mãe...

Hoje ao retirar as imagens do oratório do seu quarto, a saudade bateu impiedosamente...

Algumas te acompanharam por muito tempo, outras nem tanto, mas todas é a tua cara.

Elas ali guardadas, naquele cantinho tão delicado, expressa bem a sua fé, além da pureza e inocência que existia nessa grande mulher de personalidade forte, de poucas palavras, que quase não sorria, a sua alegria era raramente externada, tudo pra você era normal.

Era sempre muito comedida, não fazia alarde, raramente elogiava alguém, mas também, nunca falava mal.

Foram 99 anos de exemplo de dignidade, rigor, fortaleza, perseverança, companheirismo, sabedoria incomum das coisas da vida, de fé inabalável, de alma pura e coração embasado na razão, que a fazia enxergar o mundo de um jeito diferente... um jeito só seu.

Não tinha lá muito jeito para expressar o seu gostar, o seu amor, nem com os filhos e nem muito menos com o marido, não tinha muito tato pra isso, era na verdade muito "seca". Acho até que sofria um pouco com isso.

Desde de cedo, menina moça ainda, já se notava a projeção do seu caráter, da sua personalidade forte, a amostra da sua independência – contava os seus amigos de infância - e por assim ser, era comum bater de frente com a sua mãe.

Já se casou um pouco madura para a época, e com um jovem bem mais novo, nada menos de que onze anos de diferença, o que levou a muitos fazerem piadinha de que você havia pegando um menino para criar – e isso lhe aborreceu muito.

Mas naquele sertão mineiro, sem muitas oportunidades para se vê gente, era raro encontrar um rapaz de peso, o tal “bom partido”, como era comum dizer por àquelas bandas e quando o meu pai por ali chegou à procura de trabalho, de melhora, já que onde vivia era um lugar de muita pobreza, onde faltava às vezes o alimento para o sustento, lhe dispertou interesse.

Àquele rapaz de apenas 21 anos, era tímido, simples, mas trabalhador e ainda, cunhado de alguns dos seus irmãos, o que credenciava a ser um moço bom, porque vinha de uma ótima família.

Se não era o homem que você sempre sonhara – porque isso você nunca disse – soube-se que existira alguns pretendentes pela redondeza, que fazia gosto à sua mãe, mas foi ele quem mais lhe chamou a atenção e assim começou o namoro e veio logo o casamento.

Formaria assim, a união de 5 irmãos de uma mesma família, com outros 5 irmãos de uma outra família, como se quisessem segurar fortuna – o que não era o caso.

Como era mulher independente, fazia àquilo que o seu nariz apontasse – como diz o ditado – sem dar satisfação a ninguém.

O dinheiro por aquelas bandas era muito custoso e você trabalhadeira que era, sempre plantava sua rocinha, criava um porco, alguma rês e assim ia juntando seu dinheirinho, sem depender dos pais.

Você, além de plantar, capinar, colher o algodão, ainda fiava, tecia e bordava suas peças de pano, especialmente as toalhas de mesa. Isso sem falar nas tinturas que tinha que fazer, colhendo flores do campo para dar o colorido nas linhas.

E quantas paneladas de comida cozinhastes para os camaradas do seu irmão... Coragem não lhe faltava, era uma mulher valente, decidida, uma fortaleza e de gênio forte também. Acho que acabei herdando um pouco desse seu gênio.

Com a sua experiência e fortaleza, juntada com a vontade do meu pai que era um homem trabalhador e honesto, fizestes o seus bens se multiplicarem e até se destacarem perante aos seus irmãos

Vieram os filhos, num total de seis, mas três acabaram se sucumbindo diante da vida e você nunca se abateu em momento algum pela falta deles. Sempre fostes forte para receber os baques da vida e aceitar bem os desígnios de Deus imposto à vida de vocês.

Você nunca fostes de passar a mão na cabeça de filhos, logo cedo, os colocava para cumprir tarefas, tínhamos nossas obrigações na lida diária da propriedade.

Assim, nos preparastes para que desde os sete anos pudéssemos enfrentar a vida lá fora quase que sozinhos, pois tivemos que sair para estudar, morando em casa de parentes, pensionatos, internatos. Aprendemos a ter responsabilidade muito cedo, aprendemos que tínhamos que nos virar, para conseguir sobreviver nas terras distantes, onde muitas vezes a gente chorava e vocês nunca ficaram sabendo.

Penso que apesar de se fazerem durões, porque sabia que não haveria outro recurso para nós estudarmos, por dentro tinha preocupação sim, mas na sabedoria de cada um de vocês, não poderia deixar transparecer um coração mole, porque seria bem capaz de nós desistirmos dos estudos.

Quantas vezes, chegado o último dia de férias, era hora de voltar para a escola. Ali, de manhã cedinho, arrumando as coisas para ir pegar o Trem – único meio de transporte por àquelas paragens - era hora do dinheiro...

Meu Deus, como me doía ver você juntando todo trocadinho que tinha – o dinheiro era tão escasso – você levantava o forro da mesinha, era ali que guardava o dinheirinho e juntava tudo que tinha ali...

Vocês vão ficar sem nada – eu lhe dizia.

Deus dá a providência – respondia você.

Me entregava àquele pacotinho e me dizia: economize, não gaste à toa.

No início, você nos levavam e quando ficamos adolescentes, fazíamos as viagens sozinhos.

Ao nos despedir e deixar você dois ali sozinhos, “perdidos” naquela propriedade, onde o único divertimento que existia era o trabalho, nos cortava o coração.

Do leite vinha parte do sustento, você fazia no início, os queijos, depois migrou para os requeijões por ter mais saída, que eram vendidos na comunidade próxima e assim mesmo, não conseguia preço justo, contentava com o que achava e ainda bem que tinha suas freguesas que compravam para vender os “casadinhos”.

E assim, vocês conseguiram nos letrar, e com orgulho assistiram a colação de grau do curso superior de dois filhos, o mais velho desistiu de estudar – não suportou morar na casa dos outros – realmente não é muito fácil.

Nós, somos orgulhosos da mãe e o pai que temos, reconhecemos o esforço de vocês e procuramos retribuir um pouco do muito que recebemos.

Pois é minha mãe, penso que se a vida não foi totalmente de felicidade para vocês, também não foi de tudo infeliz, puderam ver as “árvores” que vocês plantaram darem frutos e foram bons frutos, diga-se de passagem.

Você foi a mais privilegiada de todos pelo tempo, foi a que mais viveu dentre todos, 99 anos... Até no último instante da sua vida aqui, fostes dona do seu nariz, administrando sua casa e tinha uma consciência e um discernimento muito grande de tudo que acontecia com você, do seu corpo em especial.

Mesmo diante da sua dependência pela falta de visão e locomoção, nós não lhe tiramos as rédeas da sua casa. Procuramos respeitar às suas vontades e desejos.

Você independente que era, não aceitava ordem de ninguém – demorei a compreender isso .

Lembra quando eu disse de um jeito meio desaforado que a você estava comendo muito doce – me preocupava com a sua glicose?? Você não me respondeu nada, apenas no outro dia quando entrei na sua casa tinha sobre o fogão: arroz doce; canjica; doce de mamão e de casca de laranja. Tudo para me mostrar que na sua casa mandava você.

Lembra quando íamos construir o barracão nos fundos e precisava agasalhar as coisas dentro de casa?? A minha irmã saiu da cidade dela, matou serviço etc e tal e veio para ajudar. Mas ela não lhe perguntou onde você queria que colocasse as coisas, simplesmente foi dando ordem, e colocando um pouco aqui, outro ali.

Você não concordava muito e disse pra ela: assim que você virar as costas, eu volto tudo pro lugar. E assim o fez.

Você sempre foi muito vaidosa, nem mesmo a perda da visão nos últimos três anos, lhe fez perder o gosto pela vida. Um exemplo de fé e de amor a Deus.

Você que sempre fostes de falar pouco, depois da morte do meu pai, você teve que “assumir” o posto dele, de conduzir as prosas das visitas. E assim o fez, você passou a falar mais.

Quis a vida que eu tivesse o privilégio de estar perto de você nos últimos anos da sua vida e principalmente na hora da sua partida.

Pude ver àquela mulher que educara seus filhos com rigor, curvar diante da vida, se deixando revelar que não era de todo uma mulher seca, mas que não aprendera ou a vida não lhe dera a oportunidade de sentir as coisas do coração como o normal e sim do seu jeito.

Era rara às vezes em que você encontrava motivo para sorrir e no seu aniversário de 99 anos, na companhia dos seus dois filhos, nora, sobrinha e sua secretária, onde cantamos os parabéns - o primeiro parabéns de sua vida - brindamos os seus 99 anos e nesse instante, você nos presenteou com o seu sorriso – um sorriso discreto.

Me doía muito ver você ficar com o olhar perdido no vazio...porque a visão já não mais existia e eu tentava fazer de tudo para você se sentir útil e não deixar se abater e por isso eu até lhe dava “responsabilidades” para você não se sentir inválida diante da vida.

Agradeço à Deus todos os dias por você ter partido sem sofrimento e mais, por eu estar presente e ter lhe acompanhado nos últimos instantes...

É doído sim, lembrar do seu corpo frágil, da sua inocência, da sua pureza, ali naquela cama, onde a vida aqui na terra para ti, ia se esvaindo...e você se foi como um passarinho...

Você se foi...nos deixou órfãos, mas também nos deixou um pouco da sua fortaleza.

Que saudade minha mãe...

A sua fortaleza, os seus ensinamentos serão eternamente lembrados por nós e nos servirão de exemplo.

Você foi uma grande mulher, nós te amamos muito.

Saudades...

(24 de janeiro de 2014 – 4 meses da sua partida...)

Menino Sonhador
Enviado por Menino Sonhador em 16/02/2014
Reeditado em 07/10/2017
Código do texto: T4693324
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