Abismo abismal

Nunca me senti tão deslocado, com tanto ódio do júbilo ou ventura de outrem: qualquer coisa de que meus olhos não gostem, surge logo uma vontade de quebrar, de destruir o objeto visto, de arrancar aquele fogo jubiloso das mãos e dos olhos alheios... É mais do que meros impulsos de hostilidade (quem afirmasse isto seria de um reducionismo grosseiro e néscio); é horror e nojo diante das tantas perdas e tragédias e injustiças em minha vida. Sinto-me tão desiludido, vilipendiado sem saber por que estou sendo vilipendiado,

(Onde estão os teus três irmãozinhos, menino?)

sinto-me tão abandonado, tão despedaçado, como uma brisa que pensa que vai a algum lugar, contudo dobra ela bem ali a esquina e ao olhar pra esquerda não há esquerda, ao olhar pra direita o caminho já foi embora, e quando olha pra trás nem existe mais a esquina que mal atravessara há poucos segundos e agora prossegue sem nada prosseguir, tão sem rumo, como precisamente estou agora: no fundo mais fundo de um buraco tão escuro e profundo que nenhuma luz ou voz consegue me alcançar, nenhum grito meu por ajuda consegue ser ouvido, nenhuma mão para tentar me amparar de lá, e faz tanto frio este abismo (a palavra certa é abismo e não há hipérbole aqui e nem recurso figurativo: é um abismo mais grande [correta é a expressão "mais grande"? Agora é!]), este abismo é mais grande que o ventre do infinito e mais escuro e fundo do que as vísceras vorazes e nauseabundas da morte, e como faz frio este abismo tão distante que ninguém sequer quer ver ou que fingem que tudo vai melhorar, cheios de frases que são puramente chavões os quais se os colocassem nas traseiras de caminhões resumiria com vexaminosa exatidão suas vidas tão minguadas e parcas,

(Onde estão os teus irmãozinhos, Gilliard?)

e todos os risos e esperanças se apagam toda vez que você acende algum fósforo ou uma oração do fundo do seu próprio coração! Só fluem o silêncio e a desolação que formam a real substância de todo este abismo negro e até mesmo o ar (se é que existe ar), tudo apodrece dentro deste dentro que não está em lugar algum e habita tudo. Não há um Sol para nascer a leste ou um ocaso a oeste, não há pássaros nem céus nem nuvens nem calor nem piedade nem dia nem um ruído sequer de uma gota cálida de algum gesto breve de paz ou de chuva... não, não há alegria alguma aqui dentro. Só um corpo doente que foi empurrado pelo fado e pelos deuses para dentro deste abismo profundo,

(Por que nos abandonaste? por que nos deixaste ir embora tão cedo?)

não há nenhuma saída ou sequer goteja uma ideia de alívio em meus áridos lábios, ou um vento que traga um barco ou uma folha de salgueiro, ou onde foi morar o riso daquela criança que brincava comigo quando éramos pequenos e que éramos tão felizes mesmo sem ter nenhum brinquedo, pois havia entre aqueles três irmãos amor, um amor silencioso na fala, porém tão florido nas ações, nos abraços natalinos e nos instantes de felicidade, nas brigas de faz de conta, nos filmes assistidos, na hora de tomar café bem quentinho e um pão tão singelo com manteiga barata que comprávamos tudo na padaria do seu Manoel, que hoje a padaria é uma outra coisa que não é mais aquela padaria,

(Por que nos abandonaste? por que nos deixaste ir embora tão cedo?)

[acho eu que o seu Manoel de quem eu tanto gostava dorme profundamente sem saber que dorme profundamente lá no velho cemitério, entre caburés e alguns encurvados cajueiros que não dão pela falta do seu Manoel e acho tudo isso tão pungente, aflitivo e penoso que minhas mãos chegam a tremer de indignação e espanto e meu coração fica encharcado de tristeza como o corpo antes tão contente da criança que ao açude foi nadar e agora flutua, submersa e afogada, na barriga do impiedoso e fundo açude,

e brincadeiras havia tão vívidas naquelas chuvas de março e abril, o esconde-esconde nos cômodos da casa e debaixo das mesas e das camas dos quartos, tudo era brincadeiras e longas tardes que nunca entardeciam... mãe, mamãe: conta-me, por favor, onde sepultaram o pião e a bola de futebol dos meus três irmãos que a senhora escondeu e cadê as mãos dos meus irmãos que manejavam tão bem aqueles instrumentos humildes que comungavam sementes de felicidades naquela árvore do quintal onde pegávamos tantas pitombas a qualquer hora do dia e da noite e nos divertíamos tanto nessa pitombeira tão frondosa e semeadora de amizades, mas que anos e anos depois a nossa árvore foi cortada e retalhada como se ela não fosse mais uma divindade vegetal cheia de alma e encanto a nós_ castas, sonhadoras e ingênuas crianças, que subíamos em seus fortes e múltiplos galhos, cantávamos as músicas que ouvíamos na época, compartilhávamos alegrias e histórias, víamos a vida ali e dali com olhos tão aquilinos e reluzentes,

quem dera que houvesse pelo menos uma flor que exalasse alguma fragrância de fé ou, quem sabe, se pudesse sentir as pequeninas asas de uma borboleta passando pelo meu rosto tão magro e cansado, ou uma alcova para descansar esta minha alma tão quebrada, ferida em carne viva e flagelada; todavia, não, ó céus indiferentes que não podem testemunhar toda a angústia que corre e corrói os meus ossos fracos e carentes de cálcio e vitamina D: há somente os chicotes da tristeza a arrebentarem as minhas costas, bem como as pedras pontiagudas no chão cortante que perfuram e sangram meus pés e meus caminhos que nem ainda percorri ou sequer achei algum dia percorrer... busco até um delírio de redenção dentro de mim ou por algum messias profetizado nas religiões abraâmicas, ou busco o cântico de uma cigarra com seu violino natural ou uma prece de um sabiá que voa longe de seus amados filhotes, ou se houvesse um pensamento que mudasse concretamente algo, ou quem sabe até bastaria o clamor de um cisne em agonia à beira de um lago árido e seco (e embora clamar possa parecer um ato de desespero, ainda assim o clamor de um cisne em agonia já seria algo real, afinal um "clamor" já é alguma coisa),

ou se surgisse o voo de uma pomba que me revelasse um segredo ou um evangelho verdadeiro para mim ou houvesse algo que não seja só este silencioso terremoto abismal que racha e derruba todas as paredes e os alicerces do meu ser, porque tudo neste abismo abismal é só dor, pranto e mais dor e pranto... E toda mensagem ou palavra de força, consolo ou otimismo é só a mudez a falar e falar e falar sem dizer coisa alguma que sirva. Maldita meretriz que pariu este maldito mundo!

(Por que nos abandonaste? por que nos deixaste ir embora tão cedo?)

o quê? Não vos escuto! hein?! Tem alguém me ouvindo aí de cima ou unicamente o desejo gerado pela realidade não confessada do desamparo e fragilidade humanos, como tu és desgraçado e miserável, ó sombra rastejante denominada "homem", como és desprezível e frívola, ó raça humana, ante este universo indiferente que nem sabe que é universo e nem sabe que é indiferente ou o que poderia ser ou significar indiferença,

(Por que nos abandonaste, meu irmão, por quê?)

assim como somente existe a primeva vontade concebida pela dor e pelo medo de que no fundo não haja absolutamente nada e nem ninguém para nos assistir e nos levantar naquele momento e tempo deveras essencial; não há ninguém que se importe realmente conosco, com as nossas feridas cotidianas e profundas ou se estamos vivos ou mortos! Há apenas as crenças concretamente abstratas de que há alguma coisa que porventura é coisa nenhuma ou nenhuma coisa no apagar da derradeira luz da casa.

Havia sim três anjinhos, mulatinhos, que brincavam, agora, de faz de conta com uma bola feita de sacolas de plástico com folhas de caderno no interior da primeira sacola, e jogavam futebol perto da antiga pitombeira, que jaz tão decapitada e esquartejada como a nossa antiga casa onde nascêramos, crescêramos, brincáramos e éramos, outrora, tão luminosos, vivos e felizes.

(Por que nos abandona continuamente, Deus, por quê?)

Gilliard Alves
Enviado por Gilliard Alves em 19/04/2024
Reeditado em 20/04/2024
Código do texto: T8045572
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