Meu Pai & Eu

 

 

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Eu ainda era uma criança daquelas que já iniciava o dia procurando uma diversão.

Quase sempre o local escolhido era a natureza, - sítios localizados bem próximo à casa de meus pais. Então já tínhamos trilhas certas: passear dentro do rio que circundava a cidade. Muitos pés de fruteiras - mangueiras, bananeiras, cajueiros, goiabeiras, tamarindos e muitas mamonas para “guerrear” com os colegas, todos com doze ou treze anos de idade.

 

Pescarias, correr nos sítios e, à tardinha, íamos passear a cavalo, - fazendo o percurso do sítio para um povoado vizinho, denominado Candeias, distante cerca de seis quilômetro da cidade. Íamos, ora caminhando, trotando ou “pegando corrida”.

 

Ao voltarmos do passeio íamos banhar os cavalos em um açude localizado em uma das propriedades, nos banhávamos e seguíamos para casa.

No dia seguinte a história toda se repetia.

 

Antes, entre nove e onze anos as brincadeiras eram de jogar bilas (bolas de gude), petecas e muito futebol, que já começava cedo da manhã. Pulávamos o muro da quadra de esporte da cidade para jogar futebol de salão.

 

Pois é, - e esse menino não estudava?

 

Àquela época as escolas tinham uma carga horária de cerca de quatro horas- não tenho certeza. O fato é que eu não estudava o necessário para me destacar como aluno. Exceto bem mais tarde, em matérias como Organização Moral e Cívica, OSPB - Organização Social e Política Brasileira e outras matérias que exigiam habilidades em desenhar e escrever. Eu não tinha o mínimo interesse em ciências exatas, e por uma vez, fui advertido por um professor, - engenheiro da RFFSA – Rede Ferroviária Federal. Ele se aproximou em silêncio da “carteira” que eu ocupava e me flagrou lendo um livro sobre filosofia, - e murmurou baixinho: “moço você não quer ovo...”! Ele falava muito baixo. O espaço de tempo que o levou de minha carteira para o quadro negro, foi o suficiente para eu me levantar e fazer um discurso eloquente sobre a sua forma de ensinar, - com sua voz baixa, sem nenhum entusiasmo. Foi o suficiente para que chamassem o Diretor do colégio, antiga CENEC – Campanha Nacional de Escolas da Comunidade.

 

O Diretor (Dr. Ilídio Silveira – profissional de odontologia) veio à nossa sala, - com ar de avaliação, com óculos caídos, na ponta do nariz...

Três feiras com as quais eu fazia trabalhos de arte (desenho, pinturas etc.) me abandonaram à minha própria sorte. Mas dois amigos, - um deles gerente da COBAL – Companhia Brasileira de Alimentos, - órgão do Ministério de Agricultura criado em 1962 e extinto em 1990 e outro que mais tarde veio a ser meu colega de empresa, se levantaram em meu apoio.

 

Realmente, um “levante!” em meu apoio. O professor não apareceu mais para dar aulas. Também tive problemas com o professor de OSPB, - Promotor de Justiça da cidade vizinha por criticar as minhas redações com temas sobre Democracia , Direitos Humanos e desigualdades sociais.
 

 O professor era Promotor de Justiça da cidade vizinha, Aracoiaba -CE. Ele se achava maior que Deus, - da mesma forma que alguns juízes da atualidade. Há muitos livros sobre este tema.

Eu quis, entre outras coisas ser advogado. Prestei três semestres e abandonei. Não foi uma escolha inteligente. A maior parte dos alunos, jovens, estavam lá por dinheiro. Eu estava porque gostava.

 

Minhas filhas, entre outras atividades, - são advogadas.  

 

Mas voltando ao tempo em que eu cursava o ensino primário, eu era encarregado de fazer os cartazes por ocasião das datas festivas: festas das mães, homenagem a Tiradentes, Proclamação das República, entre outras.

Numa dessas festas tinha um número musical, um cântico que eu nunca encontrei a letra: “Foi pensando em ti/ mamãe/que essa manhã acordei/com uma prece bem sentida e ao Bom Deus, rezei...”

 

A professora observou que eu entoava o canto de forma afinada. Me elogiou. Foi o meu ponto de partida para que eu começasse a cantar e aprender a tocar violão - ainda hoje mantenho o hábito, - como estudante e um hobby. Um elogio pode salvar a vida de muitas pessoas.

 

Ter sido uma criança e adolescente com recursos escassos de nenhuma forma afetou o meu equilíbrio emocional ou minha autoestima. Nunca me senti menos do que eu realmente era em função daquela situação. Naquela época, década de 70 (setenta), livros e boas escolas eram muito raros – somente ao alcance dos nascidos de famílias privilegiadas.

Naqueles tempos, tudo era privilégio. Viver, simplesmente, era um privilégio! Sobreviver, também. E hoje, não é?  

 

Livros, cadernos, canetas, lápis, - as condições básicas para iniciar os estudos, eram bem precárias. Para compensar a ausência de livros, eu me tornei um dos garotos mais assíduos da Biblioteca Municipal de Baturité, - a qual tinha livros incríveis, que acenderam minha curiosidade e gosto pela leitura, pela pesquisa e vontade de tê-los ao longo da vida.  

 

Mas eu precisava trabalhar - trabalho não tinha.

Um amigo da família conseguiu uma oportunidade para eu “trabalhar” em um escritório de contabilidade, sem remuneração, - somente objetivando que eu adquirisse experiência. Passei dois anos nessa condição, - trabalhando apenas para “obter conhecimento de vivência em um escritório, lidando com pessoas etc.

Tratava-se de um Escritório de Contabilidade Pública, de propriedade do Sr. Zequinha Paixão, o qual era o responsável pelos 12 municípios que formam o Maciço de Baturité.

 

Nunca recebi nenhuma remuneração, mas o aprendizado me habilitou a exercer outras atividades e me possibilitou “ter mais chão”. Senhor Zequinha Paixão era um avarento, mas sempre me lembro dele com gratidão.

Ser “avarento” naqueles tempos era algo adequado, que se nos impunha, haja vista que tudo era muito difícil. Então, “aquelas pessoas” sabiam muito bem o valor das coisas e das suas conquistas. Se para mim foi muito difícil, imagino o quanto fora difícil para ele, - que, provavelmente tinha nascido na primeira década de século XX, a partir de 1901.

 

Quando ele se aposentou das funções que exercia ainda mantive contato com ele e outros familiares, desta feita já com uma condição melhor, - empregado, - funcionário público. De alguma forma já bem-sucedido. Ocupava a função de Agente Postal da cidade – com salário razoável, residência, água, luz e telefone por conta do Governo Federal. Fui aprovado num Concurso Público, em primeiro lugar.
 

Meu Pai

 

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Se os meus dias eram recheados de brincadeiras próprias de crianças e adolescentes, as minhas noites eram de grande aflição.

 

Papai bebia bastante e chegava em casa com frequência dominado pela bebida (cachaça).  Ao adentrar à rua em que morávamos, já se ouvia a sua gritaria, excomungando toda vizinhança, - com palavrões, acusações as mais diversas, - nos causando enorme humilhação perante os nossos vizinhos e amigos. Essa cena se repetia com frequência, - semanas, meses, anos a fio.

 

Ao ouvir os gritos eu tapava os ouvidos, mas não impedia que eu os ouvisse. Era um filme de terror. Todos sofríamos muito, com excesso para minha mãe - palavras que machucavam mais que qualquer chicote… machucavam o corpo e a alma.

 

Papai era mecânico de automóveis (Jeep, Rural etc.).


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Era analfabeto de pai e mãe – não escrevia e não sabia ler. Mas lidar com veículos tipo, Rural e Jeep, era a sua paixão, a sua canção predileta. Ao lidar com consertos desses carros o seu semblante não parecia a de uma pessoa angustiada pela lida da vida, era sereno, com foco, sem más palavras. Ele desmontava tudo e montava novamente, sem nenhuma anotação ou dificuldade. Nossa casa tinha um ar de oficina mecânica.

 

Com o passar do tempo, após casar-me, constituir família, duas décadas depois, - iniciei uma busca de entender a história dele, compreender os motivos que justificassem as suas grosserias e a falta para conosco.

Logo cheguei a algumas conclusões, de forma clara, pois com a experiência que eu já tinha, de responsabilidades para com minha família, fazer esse exercício, - de remir papai das suas agonias e das que nos causou, se nos impunha. Era uma necessidade minha, afinal tudo quanto eu não queria era ficar com alguma mágoa ou rancor do meu pai.

 

Conclusões às quais cheguei:

 

o Papai nasceu em: 29/09/1929 e faleceu em 09/02/2002.

o No período que papai viveu como criança e adolescência, a região na qual ele nasceu deveria estar ainda muito sob a sombra da escravidão, das secas que dizimou milhares de pessoas; água, energia elétrica, escolas etc., não havia e/ou eram bem incipientes ou inexistentes, - para coexistir. Então, a vida dele deve ter sido nada fácil.

o Casar-se com mamãe creio que foi a melhor coisa que deve ter lhe acontecido na vida. Uma mulher boa, alfabetizada, dentro do possível o melhor possível, - foi abençoado com essa união. Mas os desafios da vida, o peso de prover uma família do mínimo possível, naqueles tempos difíceis da década de 60 não devem ter sido fáceis;

o Então, papai sofria em função das dificuldades próprias da época, da ausência de recursos suficientes para dar uma melhor condição de vida para à família entre outras questões existenciais.

 

Exposição Inadequada

 

Quando meu pai estava em um bar (cidade pequena) logo a gente tomava conhecimento. Era um bêbado horrível, - de ver e de tolerar.

 

Quando ele estava nos bares, lembro das várias vezes em que ele enviou um portador à nossa casa, com um recado:

 

- Portador: Júlio César, seu pai está no Bar do Zé Leal e disse para você ir lá. Quer falar com você.

 

Eu já sabia de que se tratava. Já tinha atendido esse chamado várias vezes. Me dirigia ao bar, lá chegando ele determinada que eu me sentasse no tamborete.

 

- “Pedido do Papai”: Eu estou precisando de $ (Cem dinheiros). Quero que você faça uma carta para o Sr. Carlos Cardoso pedindo esse dinheiro emprestado, pago a tempo certo e apresente o meu muito obrigado. (algo assim). Após escrever ele pedia que eu lesse em voz alta para que todos pudessem ouvir. Depois me dispensava.

 

A Mensagem Que Ele Queria Passar

 

Papai queria demonstrar para os seus amigos e companheiros que ele estava naquele momento numa situação de embriagues, que não sabia ler ou escrever, mas que na medida do possível, ele tinha podido proporcionar as condições necessárias para que o seu filho pudesse ser alfabetizado.

 

Então após muitas reflexões acerca da vida que tivemos, compreendi que o meu pai, de acordo com as suas circunstâncias de então, nos proporcionou o melhor possível.

A minha certeza sempre esteve amparada no Evangelho de Lucas, capítulo 11, versículo 11. A passagem completa é a seguinte: “Qual de vocês, se o seu filho lhe pedir pão, lhe dará uma pedra? Ou se pedir um peixe, lhe dará uma cobra?" (Lucas 11:11, NVI).

 

Essa passagem faz parte do ensinamento de Jesus sobre a importância da oração e da confiança em Deus como um Pai Amoroso e provedor. Jesus utiliza essa analogia para enfatizar que, assim como um pai terreno dá coisas boas aos seus filhos quando lhe pedem, Deus, como Pai celestial, está disposto a atender às necessidades de seus filhos quando eles o buscam em oração.

Hoje somos uma família unida e, em nenhum momento, ao longo dos anos, nunca tivemos nenhuma questão de desunião.

 

Casamento

 

Em meados da última década do século XX, em uma das minhas visitas a mamãe, - ela veio conversar comigo sobre as últimas homilias do Pe. Plínio (Pároco da Paróquia N.S. da Palma em Baturité), contou-me, - com um ar de expectativa sobre a conversa que estávamos tendo, - que Pe. Plínio estava a falar, em seus sermões, que as mulheres que não estavam casadas na igreja estariam “em pecado” ao receber a comunhão...

 

- Mamãe: Meu filho, dizia-me ela, - não sei como conversar com seu pai sobre este assunto... Do jeito que ele é nervoso...
 

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Mamãe

 

Claro que eu compreendi de imediato a situação. Conversei com o papai, contextualizei toda a questão de forma que ele compreendesse... Foi uma conversa “serena”. Disse-lhe que o casal já estava junto há x anos, com 04 filhos já adultos, netos... Que ele não tinha o direito de fazer uma desfeita para com a mamãe e deixá-la passar por algum constrangimento.

Ele concordou. “Estava num dia bom”!

 

- Papai: É meu filho, - nós já estamos há tanto tempo juntos... Já estou amarrado mesmo!...”.

 

Conforme o Chicó (Ato da Compadecida): Só sei que foi assim.

 

Acho que papai nunca tinha adentrado em uma Igreja. Entrou para casar-se com mamãe.

Então, promovi o casamento entre meus pais, após meus quarenta anos de vida. Convidados apenas os familiares e uma meia dúzia de amigas próximas da mamãe.  

 

Atualmente mamãe que é nascida em 15/05/1932, encontra-se com boa saúde, graças a Deus, gozando de boa saúde e merecida paz.

 

Eu sou a favor do casamento. No civil e no religioso, ou uma bênção sacerdotal, acompanhada da bênção dos amigos e familiares. Eu simpatizo muito com o casamento. Acho que as pessoas que se amam devem formalizar o relacionamento em qualquer uma das formas acima.

 

E se houver filhos decorrentes da união, acho que é indispensável.

Não é justo que os filhos venham a sofrer eventuais constrangimentos na escola e/ou perante as famílias que se relacionam com o casal.  Acho top!

Sem os exageros que alguns casais fazem, tipo: a festa é mais bonita que o amor que os une.

                                               

                                                     ***

(*) Nota: Agradecimento especial à poeta e escritora Maria, do Recanto das Letras que, em uma interação, me estimulou a fazer esse registro em memória do meu pai.

 

 

Meu Rascunho de: 30.09.2023

Título: Meu Pai & Eu

Autor: Júlio César Fernandes

 

 

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Julio Cesar Fernandes
Enviado por Julio Cesar Fernandes em 30/09/2023
Reeditado em 02/10/2023
Código do texto: T7898029
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