Cartas – Parte 1


Maria Luíza sentou na beira da cama e abriu a carta que tinha o seu nome. Trêmula, começou a leitura da carta. O sol que fazia em São Paulo não a fazia suar tanto como a ansiedade em saber o que a esperava naquele papel.

“Malu.

Você sabe que sou péssimo com isso, não é? Não gosto de cartas, não sei passar o que penso ou sinto para um papel. Você não tem noção do quanto estou odiando ter que escrever, mas talvez essa seja a única forma de vocês compreenderem o que tem se passado comigo nesses últimos tempos.

Antes de começar, quero te dizer que eu amo você. Muito. Eu sempre te amei. Inicialmente foi um sentimento de querer você para mim, depois tornou-se fraternal, um amor respeitoso, porque é muito claro que seu destino se completa ao do Michel. E não é clichê, não é bobagem. É a realidade. O Michel sempre esperou por você - mesmo que não diretamente -  mas ele sabia que nunca sentiria por outra o que sente por você, tão pouco viver o que viveram. É bizarro o quanto vocês se completam. E é nojento ter que escrever isso.

Eu espero, Malu, que vocês nunca esqueçam o quanto se pertencem. Cuide dele, cuide do Miguel e sejam uma família feliz. Sei que você anseia pela felicidade, e que talvez, ao ler essa carta, sinta raiva de mim, mas na verdade a minha escolha foi apenas uma consequência do que eu fiz. Uma consequência adiantada, talvez. O ser humano num geral sempre paga pelas suas escolhas, não importa o que ele faça. Eu paguei pela minha escolha de viver como quis, de ter as minhas experiências sexuais com pessoas. Naquele dia que nos encontramos no aeroporto eu me despedia de um rapaz que me envolvi há uns meses, ele fora infectado pelo vírus da aids e sem saber, nos envolvemos e eu fiquei doente. Não o culpo. Devia ter procurado saber sobre isso, mas no dia que tudo aconteceu a última coisa que eu queria era pensar. As coisas acontecem por algum motivo, certo? Saber que eu morreria por causa de uma doença como a aids não me assustou. O que me assustou era ter que deixar as pessoas que eu amo. Era saber que tudo o que conquistei, acabaria. Ou saber que eu definharia e não teria condições de ser independente. De saber que dependeria de outras pessoas para coisas básicas. E isso faria com que vocês deixassem de fazer por vocês para fazerem por mim. Eu nunca permitiria isso, Maria Luíza. De forma alguma. O Michel tem um baita caminho pela frente, se não for na Babinsky será em outra empresa ou até mesmo trabalhando em um negócio próprio. Anos atrás ele tinha interesse em abrir uma confeitaria na zona Sul. Invista junto, Malu. Você, Michel e a caipira vão ser um trio de sucesso. Ela na produção, Michel na direção e você na gerência. Não importa, só invistam. A Babinsky já deixou marcas muito profundas em vocês dois. É hora de novas coisas.

Eu vou estar em algum lugar olhando por vocês e torcendo para que sejam felizes. Seja para a Samanta uma segunda mãe, Malu. Ela vai precisar de você. E a faça entender sobre minha escolha. Tanto Samanta como o Michel. Eu sei que você vai me entender. A sua visão sobre a nossa relação é diferente da visão que Michel tem. Eu não conseguiria viver sabendo que interromperia a vida de vocês. Eu não conseguiria continuar sabendo que a cada dia que passa a doença está acabando comigo. Se isso é egoísmo ou não, não sei. Honestamente, só fiz a única coisa que poderia me dar paz nessa situação. Se está certo ou não eu nunca vou saber. E não há beleza alguma na morte quando se está doente.”

Maria Luíza precisou parar de ler a carta por um tempo, pois começava a perder o ar de tanto que chorava. Ela colocou a mão sob a boca para abafar o som. Michel dormia em sua cama, no quarto ao lado e Samanta fora passear com Miguel. Não queria acorda-lo. Respirou fundo e deu continuidade. A mão tremia tanto que era difícil ler.

Guarde os nossos bons momentos, tanto os que vivemos na escola como o que tivemos após a sua volta ao Brasil. Você é maravilhosa, tanto por dentro como por fora. Nunca deixe dizerem menos do que isso sobre você. E não importa os erros que todos cometemos no passado ou no presente, isso tudo vira história para contar aos netos. O que importa é a chance de consertar. E você tem essa chance. Então, Maria Luíza Teixeira aproveita essa chance e recomece com o Michel. Eu não poderia ser mais grato por ter conhecido você. Eu não poderia ser mais grato por ter a amizade de Michel. Eu não poderia ser mais grato por ter amado e sido amado, mesmo que por algum tempo, pela Samanta. Quanto a mim, eu fui em paz. Sentirei saudades de todos. É isso.

Amizade é um negócio muito poderoso, Malu. Muito mesmo.

Para sempre,

Bernard.


- Amizade é um negócio muito poderoso, Bernard. - Ela repetiu, sorrindo para a carta como sorria para o velho amigo. Depois deitou na cama e lembrou da primeira vez que viu Bernard em sua versão adulta e de como gostou do seu jeito vivo de ser. Parecia que esse reencontro tinha sido há anos. - Amizade é um negócio muito poderoso.

Tamiris Vitória
Enviado por Tamiris Vitória em 12/12/2016
Reeditado em 08/06/2022
Código do texto: T5850639
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