O segredo de Letícia -1

Letícia sempre fora uma menina tímida, talvez por ser gordinha, o que não a poupava de piadas cruéis nem dentro da própria casa. Seu pai, Henrique, e os dois irmãos, Ricardo e Luisinho, adoravam chamá-la de "gorducha", "pesada" e "elefantinha". Até a mãe, Amélia, dizia quando ela se queixava, chorando muito:

-Mas você está gorda mesmo, minha filha.

Ela se olhava no espelho e se sentia um lixo. Achava-se feia e desgraciosa como um hipopótamo. Foi passando a usar roupas escuras e compridas, isolando-se de todos. Na escola, começou a evitar os colegas, que a apelidavam de "baleia gorda" e "rolha de poço". De bonito, diziam que ela só tinha os olhos negros e cercados por longos cílios e os cabelos muitos compridos e macios.

Outra coisa era que Letícia era boa aluna, muito inteligente e escrevia bem, mas seus talentos não contribuíam para torná-la popular, atraindo mesmo inveja dos colegas. E assim, ela foi se vendo sozinha. Para piorar, quanto mais triste e angustiada, mais ela comia, o que a fazia ter raiva de si mesma e aumentar a pressão e as gozações e pressão do seu pai sobre ela.

-Vê se fecha essa boca, sua gorda! Você come tudo que vê pela frente, só pensa em comer! esbravejava, apoiado pelos irmãos, que riam.

Porém, aos poucos, todos notaram que algo estranho começou a ocorrer. Primeiro, que Letícia não estava mais ganhando peso. Mas aquilo era inexplicável, pois ela não parecia estar de dieta.

Os colegas foram percebendo que ela desaparecia com frequência nos intervalos, reaparecendo quando as aulas recomeçavam, olhos assustados, rosto recém-lavado.

-A Letícia está se teletransportando? Ela some e reaparece.

Em casa, demoraram a notar, mas foram vendo que havia algo anormal. Uma tarde, Ricardo estava assistindo a um filme e quis ir ao banheiro, dando com a porta trancada, reclamando:

-Letícia, resolveu morar no banheiro? Você já está aí há um tempão!

-Já vou sair.respondeu uma voz engasgada.

-Está bem tendo uma diarreia, não é? gracejou.

A porta se abriu e Letícia saiu, muito pálida, o que o preocupou. Do banheiro, um forte odor de desinfetante.

-Para que tanto desinfetante, Letícia? Quer esconder o fedor da diarreia?

Ela tinha lavado o rosto e os seus belos olhos negros pareciam mais escuros em contraste com as faces pálidas.

-Não enche, seu grosso! Vá para o inferno! foi cambaleando para o quarto.

Com o tempo, Letícia foi emagrecendo e ninguém entendia. Era possível alguém emagrecer sem fazer nenhuma dieta? A dúvida aumentou quando Carla, uma colega de sala, viu-a de longe na lanchonete da escola num intervalo e se assombrou. O lanche de Letícia era hipercalórico: coxinha, uma fatia de torta, quindim e sorvete. Ela ia comer tudo aquilo? Era horrível, monstruoso!

-Como ela está emagrecendo se come desse jeito?

Após comer toda aquela quantidade inacreditável de comida, Letícia pagou e saiu rapidamente. Carla logo espalhou entre as amigas "o segredo de Letícia"

-O quê?! Ela está emagrecendo comendo feito uma louca?! Qual será o segredo dela?

A família também queria entender, no entanto, as coisas estavam difíceis. A outrora tímida e triste Letícia se transformara numa jovem agressiva e irreconhecível. Uma vez, no jantar, a mãe reclamou que não havia mais desinfetante e Ricardo, lembrando do incidente do banheiro, entregou:

-É ela que usa o desinfetante na privada, mãe.

O pai repreendeu a filha:

-Para que usar tanto desinfetante, sua tonta?

Letícia gritou com o irmão:

-Seu dedo-duro! Isso não é da sua conta!

A mãe tentou ponderar:

-Calma, minha filha. Você não deve usar tanto desinfetante sem necessidade. E você anda agindo muito estranhamente: sai várias vezes da mesa, demora-se no banheiro e tem brigado com todo mundo pelos motivos mais bestas.

-Outra coisa - Ricardo resolveu aproveitar a ocasião- você está doente. Qualquer um pode notar.

-Nada disso. Estou ótima.

-Como assim, Letícia? - a mãe protestou - Você emagrece comendo do mesmo jeito que sempre comeu?

-Ora, deixem-me em paz, seus chatos! saiu da mesa.

-Que menina mal-educada! reclamou o pai.

-E você é o quê, seu velho? Cresci com você e os outros me chamando de todos os apelidos ridículos por eu ser gorda! respondeu Letícia de longe antes de entrar no quarto, fechando a porta com estrondo.

Um silêncio constrangedor caiu sobre eles. Amélia pôs as mãos no rosto e começou a chorar, Henrique baixou os olhos, Luisinho ficou brincando com a comida e apenas Ricardo, o irmão mais velho, falou:

-Com licença.

Foi ao seu quarto, imerso em pensamentos sombrios.