Reflexos. (Capítulo 32)

Capítulo 32 : E num minuto não está mais tudo certo.

-Mas,como?Assim,certeza? - não sabia o que dizer.Era isso,afinal de contas.Isso era a coisa pesada.Um calafrio me subiu pela espinha.Tive medo de contar um pensamento que rapidamente me veio à mente. Não,eu tinha que estar errada.Ia ser muito ruim MESMO se não estivesse. O pior é que eu também sentia que,de novo,estava certa,

mesmo não querendo,mesmo sem poder fazer nada.

Dava pra ver o quanto tudo era difícil pra ele.Eu queria dizer alguma coisa,quem sabe até tentar animá-lo ou algo assim.Afinal,um câncer não é obrigatoriamente um fim.Havia um tratamento. Havia uma cura.

-Como foi que você descobriu?

-Por acaso,na verdade.Não acho que tenha passado pela cabeça dela me contar algum dia. – ele suspirou – Simplesmente estava passando pela porta do quarto e ouvi.Ela tava falando com o pai. Sabe,eu nunca tinha visto ele chorar.E ela dizia que ia passar,que não era tão ruim assim, e por aí vai.Consolando ele.Aí ele olhou bem pra cara dela e disse que ela não tinha entendido, que ela tinha três tumores cerebrais inoperáveis.Era como se ele estivesse com raiva por ela fazer tão pouco caso da vida,como se fosse uma coisa sem muita importância. Meu pai parecia sem chão.

Exatamente como você está agora,pensei,embora não tivesse dito nada.Não imaginava o quão difícil podia ser,não sabia realmente pelo que estava passando.

-Mas...bem...talvez ela ainda viva vários e vários anos.Tem gente que fica um tempão com um tumor e nem se dá conta,e às vezes só descobrem numa autópsia ou coisa assim.Não significa que ela vá... - não gostava de dizer a palavra.Naquela hora,provavelmente soaria como um agouro ou coisa do gênero.

-Admiro o seu otimismo,Alice.Mas não tem jeito.Eu fui falar com o médico, escondido.Ele disse que só nos restava esperar - ao virar o rosto pra mim,estava claramente estampado o desconsolo.Ele sabia, sabia que ia perder a mãe.E sabia que era só questão de tempo.

Como que do nada,uma onda de pânico me invadiu.Vinda não sei de onde,indo não sei pra onde.Só sabia que estava ali,porque comecei a ficar tonta (mesmo sentada).As coisas começaram a girar,e tudo saiu de foco.Senti um coração batendo,e sabia que não era o meu.Meu mundo começou a cair.Uma coisa ruim estava impregnada ali,uma coisa que estava fazendo tudo aquilo,todas aquelas coisas ruins,toda aquela imundície.Era tão mau,tão ruim,dava nojo só de saber que estava perto. Como se essa coisa ficasse feliz só pelo fato de eu estar me sentindo péssima e completamente sozinha, como a única sobrevivente de um ataque alienígena,como uma pessoa que mesmo rodeada de gente não tem ninguém.Todas as pessoas que eu conhecera foram sendo subtraídas da minha memória.Foram se tornando névoa,as lembranças sumindo.Foram virando nada.

Isso ia passando à minha frente,como imagens panorâmicas.Eu sentia que estava desvanecendo,mas ao mesmo tempo não conseguia sair do transe.

Henrique me balançava,me segurando pelos ombros.Então,assim como tinha chegado,tudo sumiu.Eu estava lá,perfeitamente normal e sentada no jardim,sentindo o vento no meu rosto.

Não sabia porque,contudo,Henrique olhava pra mim completamente atordoado, mesmo depois de ver que eu já estava completamente normal e desperta.

-Alice,responde,vamos!

Balancei a cabeça,como se isso pudesse afastar alguma sombra que ainda pairasse por ali - Ahn,que foi?Que cara é essa?

Obviamente essa não foi uma boa pergunta pra se fazer,já que o garoto tinha tipo acabado de me contar que a mãe dele estava à beira da morte.

-Nada não.Deve ter sido o escuro.

-Que é que deve ter sido o escuro.

-Não me chame de maluco - ele lançou um olhar severo pra mim - Mas sei lá,apareceu um reflexo escuro no teu olho.Uma coisa preta.

Oooooops.

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Nem tinha me tocado,mas já estávamos no meio do ano.As coisas simplesmente passaram tão rápido.Do nada,me vi às voltas da maravilhosa semana de provas.Obviamente entrei em desespero,já que estava tão absorta em todas as outras coisas que acontecia na minha vida que mal prestava atenção às aulas.Estava literalmente ferrada. Recuperações, aí vou eu,com toda glória e louvor.

Assim eu pensava.Mas,dessa vez pelo menos,a sorte estava do meu lado.Acho que ainda não comentei isso,mas meu lindo anjo da guarda é um Einstein da vida.Com toda a paciência do mundo Gabriel me ensinou os assuntos das provas,enquanto simultaneamente se culpava por ser tão paranóico e irresponsável ao ponto de esquecer completamente que eu ainda estava na escola.

E,como todo sofrimento tem fim,assim aconteceu com o meu. Milagrosamente eu passara em todas as provas (claro que raspando em Física,e claro que devido exclusivamente ao meu professor particular com paciência de anjo).

Finalmente,férias.Muito descanso,sombra e água fresca.

Triste engano.

Como se estivesse cobrando pela ajuda com as provas,Gabe fazia eu me esforçar cada vez mais,talvez além da minha capacidade.Não dizia porque,apenas comentava que "precisávamos nos apressar".

Pessoalmente,não gostava do tom da voz dele.Ele sabia de alguma coisa que eu não tinha conhecimento,e com certeza essa coisa não era uma notícia legal.

Foi depois de um desses dias de treinamento intensivo que eu estava pra lá de cansada,esparramada no sofá,com meu moletom mais confortável (o que provavelmente significa que era o mais velho e esburacado também). Estava tão cansada que até piscar os olhos parecia um esforço hercúleo.A janta já tinha sido servida,mas, admito, eu estava morrendo de preguiça de atravessar a sala e sentar na mesa pra comer.Nunca me sentira esgotada daquele jeito.Gabe me fizera repetir sequências de movimentos dúzias de vezes,enquanto me mandava bloquear pensamentos e ainda tentar ver o que se passava na cabecinha dele. Claro,em que mundo ele pensava que eu podia fazer tudo isso de uma vez?

Por fim,quando meu estômago roncou mais alto que motor de fusca, juntei o pouco de energia que me sobrara e literalmente cambaleei até a cozinha.Me joguei na cadeira e esperei o sono chegar.

-Aliiice,minha flor.Tem visita pra você - Rita chamava meu nome da sala de estar,e eu escutava um burburinho vago onde ela estava. Visita? Àquela hora ? (bem,ainda não eram nem nove da noite,mas que importa?) Pelos céus,quem poderia ser? Já amaldiçoando a pessoa por me fazer levantar do sofá na situação em que eu estava,fui me arrastando ver quem era.

E qual não foi minha surpresa quando me deparei com Jéssica,Dani e Bia, paradas na soleira da porta,cada uma com uma expressão mais enigmática que a outra.

Meu senhor,ajude-me nesse momento,seja lá o que ele for.

-Boa noite,pessoas - assim que terminei de falar,bocejei.Foin sem querer,não deu pra controlar.

-Oi,Liz.

-Er,uhn,oi.

Ora,merda.Por que,de repente,estava todo mundo assim tão tímido?Os segundos passavam,e estávamos as quatro lá,paradas,sem dizer palavra, uma olhando pra cara da outra,até que eu me manifestei.

-Sim,acho que vocês não vieram aqui pra ficar me olhando com essa cara de tacho,certo?

-Ah,gente,vamos desembuchar logo - Dani,como sempre,muito prática - A verdade é que nesses dias um vento soprou no nosso ouvido que talvez estivéssemos sendo estúpidas demais com você - ela virou para Jéssica e Bia,que acenaram com a cabeça para ela continuar - E que, se você se afastou de nós,era porque estava com problemas,e fomos as piores amigas do mundo em simplesmente aceitar isso sem nem ao menos perguntar o porquê.E,mesmo se você não tivesse dito,é nossa obrigação estar sempre do seu lado,seja qual for a hora.

-A verdade é que ficamos com ciúmes - Jéssica começou - Porque de uma hora pra outra você parou de falar com a gente e começou a sumir e a andar com a idiota da Renata.

-Não fala assim dela,Jess - repliquei - Ela tá passando por uma fase muito difícil,e já se tocou do tamanho das merdas que fez.Talvez esteja até pagando por isso.Sério,naquela hora,ela precisava muito de mim - Bia arqueou uma sobrancelha loura bem delineada de um jeito que só ela sabia fazer - É,eu sei que pode parecer estranho,mas ela precisava muito de ajuda,e naquela hora eu era a única pessoa disponível.E ela pediu pra guardar segredo.

-Bom,mas que se dane tudo isso agora - Bia terminou - O que importa é que sentimos sua falta,e você deve ter sentido a nossa.E a única coisa que importa agora é que nosso quarteto tem que se reconciliar e esquecer esse período turbulento,e ponto final.

E aquele abraço resumiu tudo o que estávamos sentindo.Foi só então que notei as malas no pé da porta.

-Gente - parei - O que é aquilo,peloamor?

-Nossas malas,ora - Bia respondeu,um sorriso no rosto.

-Era uma surpresa,mas nós falamos com a tia P (obs:pra Dani,minha mãe é a tia P ) pra virmos dormir aqui,ao melhor estilo FDP (festa do pijama).

-Até trouxemos os filmes adequados para a ocasião,e o chocolate e tudo mais. - Jéssica trazia as malas pra dentro.Por malas,entenda que 2/3 eram da Bia,mesmo ela sendo uma só.

-Então,a fim de chorar cachoeiras essa noite?

-Claro que sim.

E aquela foi a melhor noite que eu tivera em muito,muito tempo.

E tudo estava perfeitamente bem.

Fato que não se prolongou por muito tempo.As meninas voltaram pra suas respectivas casas no domingo de tarde.Na segunda,a bomba estourou.Notei logo que alguma coisa estava acontecendo porque ambos os meus pais estavam em casa,com cara de enterro.Lágrimas insistiam em não escorrer da bochecha da minha mãe.

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Havia várias pessoas lá.Uma multidão,uma grande mancha preta conglomerada. Mesmo assim, poucos realmente se importavam.A maior parte estava lá somente por estar,porque era uma obrigação.Não sentiam nada,o que ficava cada vez mais evidente nos pêsames frios que desejavam. Limitavam-se a isso.

Não sabia o que dizer.Sei lá,é tão estranho dizer qualquer coisa.Pra mim,parecia hipocrisia. Você até pode sentir alguma coisa,mas ela provavelmente é pena.Só quem era realmente próximo sabe o quanto dói. Não compensa expressar uma falsa compaixão,uma coisa tão vazia. Melhor ficar calado.

De todos,ele era o que parecia mais arrasado.Como se tudo fosse uma taça de cristal, e ela agora estivesse estilhaçada, quebrada e esparramada em mil pedacinhos sobre o chão.As lágrimas corriam soltas pelo rosto,e ele não dava a mínima pra elas.Andava um pouco afastado do grupo,esperando talvez que ela fosse levantar,que tudo acabasse. Que,se fosse um pesadelo, ele acordasse.Mas não.Era a realidade ali, exposta,escancarada pra quem quisesse ver.Ele era o retrato do desconsolo, do abandono.Como se tudo tivesse desmoronado,como se esperasse que alguma coisa caísse do céu e acabasse com o mundo.

O único problema é que o mundo não tá nem aí pro que acontece com você.Ele simplesmente se limita a continuar girando,em volta de si e do sol,indiferente.Você é pouco mais que nada.E ele não vai parar de girar enquanto você tá ocupado tentando recolher seus cacos pra juntar todos eles de novo.

E o tempo parecia se arrastar.De longe,pude ver que ele virou o rosto quando a primeira pá de terra foi colocada sobre o caixão. Ela só confirmava que aquilo era real. Não havia volta, tudo realmente acontecera.

Se arrastou, apoiado no pai, e soltou uma rosa branca, que pareceu descer em câmera lenta até desaparecer e ser depositada no fundo do buraco que começou a ser tapado.Não se ouvia um mínimo barulho no ar exceto o da terra sobre a madeira,e depois sobre a própria terra.

Aos poucos, as pessoas foram saindo, dando graças a Deus por poder voltar pra suas vidinhas monótonas, por poder sair daquele lugar desolado. A tarde parecia combinar com o ânimo ali, e nuvens cinzas e pesadas cobriam todo o céu,deixando-o escuro em plenas 2 da tarde.

Quando praticamente todos já haviam ido embora,minha mãe encostou a mão no meu ombro, me chamando pra ir também.A despedida foi pouco mais que uma troca de olhares. Meus pais também não sabiam o que dizer.Naquela hora,pelo menos,senti que não era a única sem palavras ali.Eles ainda eram humanos o suficiente pra sentir alguma coisa,e mesmo assim não sabiam o que dizer.Numa situação como aquela,nem um convívio eterno ajudaria muito.

O clima continuou pesado na volta pra casa.Meu pai,na verdade,teve que sair quase na mesma hora em que chegou.Tinha muitas obrigações no consultório.Minha mãe colocou em ação a mesma tática que usava sempre que alguma coisa a desagradava:vestiu a capa da indiferença, e saiu.Como conseguiam mudar tão rápido,superar tão rápido,e até mesmo ESQUECER tão rápido?Não parecia que há menos de uma hora tínhamos voltado de um cemitério onde fora enterrada uma amiga querida. Fiquei de novo sozinha,me sentindo sozinha mesmo com gente ao meu redor.A imagem do cemitério não me saía da cabeça.Ele precisava de alguém.

-Não,Alice – Gabe me interrompeu – Ele não precisa de qualquer alguém.

-O quê?

-Só acho que você devia ir lá.É um lugar meio pesado,mas minha intuição diz que é o lugar certo pra você estar agora.

Meu íntimo dizia a mesma coisa.

Dei meia-volta,saindo porta afora.Disse a Otávio que precisava sair de casa.Pedi a ele pra me deixar no shopping.Não queria que ninguém soubesse pra onde eu realmente estava indo. Ele perguntou se eu queria que fosse me buscar,e respondi que voltaria com alguma das meninas. Mentiras,mentiras,mentiras.Esperei alguns angustiantes minutos, pra me certificar que ele não me veria saindo desembestada.

Andava mais rápido que o habitual.Não podia dizer que estava correndo, porque não estava,o que não me impediu de tropeçar ainda algumas vezes,e não me dar tempo nem de levantar direito e só continuar andando. Alguma coisa me puxava,me fazia querer chegar mais rápido.

Fui recebida pelos portões altos de ferro,abertos,como se convidassem alguém a entrar.O muro alto e branco devia existir pra deixar o lugar menos sombrio.A intenção era boa,mas decididamente não funcionava.

Era um lugar bem grande.A grama verde úmida e bem aparada era cortada por lápides dos mais variados materiais,com inscrições gravadas para a eternidade.Era a segunda vez que pisava ali,mas inconscientemente eu sabia pra onde estava indo.

Henriquee estava ajoelhado,apoiado na tábua de mármore do túmulo da mãe. Nessa hora,parei.Será que realmente estava fazendo a coisa certa? Não seria melhor simplesmente deixar tudo como estava,dar meia-volta e sair antes que ele me visse?

Provavelmente sim.

Era a coisa mais racional a se fazer.

Mas às vezes,a gente tem que mandar o cérebro passear e escutar o coração,e ele me dizia pra ir lá.

Quase não fiz barulho ao pisar na grama.O silêncio só era cortado por um fungado eventual. Demorou alguns instantes pra ele perceber que tinha alguém ali.

Fixou os olhos em mim.O orbe castanho estava turvo,as lágrimas se acumulando sob as pálpebras. O sorriso bobo que sempre estava no rosto sumira,e não parecia que ia voltar tão cedo, se fosse algum dia voltar.

Ficamos assim,parados nos encarando por minutos incontáveis.Ele não parecia fazer nenhum esforço pra sustentar meu olhar.Poderia estar morrendo,mas ainda assim o faria,como se estivesse me desafiando a fazer o mesmo.Controlei os impulsos de baixar os olhos e admirar meus tênis.

Não precisava de dom nenhum pra saber mais ou menos como ele estava. Tentava passar essa imagem de forte,mas no fundo não sabia o que fazer.Tanto que não se importava com as lágrimas caindo aos montes, mostrando que ele não suportava mais.

Não sei qual foi o responsável pela minha atitude seguinte.Talvez os olhos pedintes,o jeito de bebê,a tristeza pela perda.Talvez o conjunto. O fato é que eu sabia que,naquela hora,o que ele mais queria era atenção. Talvez,afinal de contas, tivesse sido aquilo que nos unira: éramos dois seres que não recebiam atenção,pelo menos não a que julgavam necessária.

Naquele momento,não me importei se ele era um idiota,babaca e imbecil. Esqueci temporariamente de todas as merdas que ele já tinha feito, de todo o sofrimento,de todas as lágrimas que eu já tinha derramado por causa dele. Ia sentir repulsa por mim mesma se não fizesse nada,mesmo com toda a dor,mesmo sabendo que poderia doer mais num futuro não tão distante.Ao pensar nisso,fiquei imediatamente mal.Estava sendo egoísta,pensando num futuro que talvez nem mesmo acontecesse.Estávamos ali.Ele precisava de mim.Isso bastava.

Ainda sentada,me arrastei pra ficar mais próxima.A distância entre nós, tanto material quanto emocional,era quase inexistente.A parte de mim que me impelia era milhões de vezes superior à que me refreava.

Envolvi-o com os braços.Um abraço tão simples,tão normal,e ao mesmo tempo tão complexo e carregado de emoções.Não sabia se devia falar alguma coisa,se devia ficar calada.Não sabia o que fazer.Meu auto-controle e a segurança,tão arduamente trabalhados por semanas, do nada deixaram de existir.Apertei com mais força,como se quisesse provar que realmente estava ali,que não o largaria por nada desse mundo, o que eu talvez quisesse que fosse verdade.Ele não esboçou reação,como se quisesse que eu estivesse ali.Só se arrumou um pouco, talvez pra ficar numa posição mais confortável. E ficamos lá,envoltos naquele abraço interminável,ele ainda chorando,eu ainda procurando alguma palavra plausível pra falar.Como se o mundo parasse,nada fazia barulho nenhum.Tudo parecia completamente deserto,com tudo tão distante.

Por fim,foi ele quem quebrou o silêncio sepulcral.