Reflexos. (Capítulo 30)
Capítulo 30 : Reunião.
-Como assim,Rodrigo?Tipo, aconteceu alguma coisa que você não tá querendo me contar?
-Nossa,parece que curiosidade chegou aí e parou,por que será?Enfim,não aconteceu nada de qualquer coisa que você possa estar pensando – explicar era como chover no molhado,ficar sempre batendo na mesma maldita tecla.
-Acho que você foi que entendeu errado o que eu poderia estar pensando – ele arqueou uma sobrancelha – Só perguntei porque talvez vocês tiveram algum progresso,sei lá.
-Gabe,você sabe muito bem que a minha vida amorosa tá mais complicada que uma prova de Física Quântica.
-Bem,não tão complicada ao ponto de você parar de fazer piadinhas infames sobre ela.
-Hahaha.Mesmo assim,é melhor forçar a risada,porque o negócio tá sério. – parei por alguns segundos – Sabe quem podia me ajudar?
-Foi uma retórica?
-Claro que sim.
-Não,não sei.
-Você. – concluí,brilhante.
Ele explodiu em gargalhadas.
-Você...tem...que...estar brincando. – pausa pra tomar fôlego,antes de começar a rir de novo.
-Não.O que é que tem de tão engraçado?Por acaso é alguma piada interna da qual eu não fui devidamente informada?
-Não,Alice.É só que talvez eu não possa te ajudar do jeito que você pretende.
-Agora tá adivinhando meus pensamentos também é?
-Mais ou menos.Caso você tenha se esquecido,temos uma conexão empática – ele sorriu – Então dá pra sacar que você quer saber qual seria sua melhor escolha,baseado nas possibilidades futuras.
-Ooooops.
-Mesmo que eu quisesse,não poderia te ajudar.Você sabe,todo aquele negócio do livre-arbítrio e coisa e tal.O máximo que tu vai conseguir de mim é um conselho.
-Se conselho fosse coisa boa,como diz o ditado,não se dava,se vendia – repliquei.
-Tu que sabe – ele levantou os ombros.
-Ah,sei lá,Provavelmente tu vai dizer a mesma coisa que diz sempre,algo do tipo “siga seu coração” ou coisa do gênero.Tão...meloso.
-Bem,talvez porque isso seja a coisa certa pra você.Você tem que decidir sozinha o que vai fazer,e então arcar com as consequências do seus atos.
-Ok,ok,ok.Parece que eu vou ter que ver tudo sozinha,então.Tomara que dê tudo certo.
-Se me perguntassem,eu diria que não há escolha errada aqui – ele pontuou.
-Realmente espero que tu esteja certo.
Me encaminhei ao portão com os dedos cruzados,rezando pra dar tudo certo.Outro problema era a coisa que eu menos precisava naquele momento.
Meu maior problema era o peso na consciência,o sofrimento por antecipação,o medo de fazer alguma coisa errada e estragar tudo (pra variar).De qualquer jeito,parecia o menos errado.Não dava pra continuar do mesmo jeito,na mesma relação furada que acabara de um jeito não tão legal.E ainda parecia estranho,dar uma nova chance pra eu acabar ferrando tudo de novo.Não, não.Chega de erros,chegar de fazer pessoas sofrerem.Basta.
Obviamente,foi muito mais difícil explicar todos esses argumentos pro Rodrigo.Não sabendo de uma (grande) parte da história,provavelmente tudo aquilo parecia sem fundamento pra ele.Como se eu estivesse ficando maluca ou algo do gênero.
-Não pode ser,Alice.Isso tudo é completamente sem noção,sem nexo,sem lógica nenhuma. Quantas vezes eu vou ter que repetir,VOCÊ NÃO TEVE CULPA DE NADA.
-Não é bem assim – eu tentava explicar – Você não sabe de tudo.Bem,na verdade você sabe muito pouco.Não vai dar certo isso.Eu sei.Não me pergunte como,mas eu sei.Vamos começar a ter problemas de novo,primeiro pequenos,e depois eles vão aumentar,vai chegar uma hora que você vai achar que eu tô escondendo alguma coisa,e eu provavelmente vou estar,porque, acredite em mim,você NÃO quer saber a história completa.E ainda é perigoso.Já começa de agora,eu não posso dizer porque.Vai dar tudo errado,a falta de conversa vai ferrar tudo.É só pra evitar mais decepção e tudo mais num futuro não muito distante.
-Sinceramente,Alice,eu não entendo – ele passou as mãos pelo rosto – É uma coisa sem pé nem cabeça,se eu não te conhecesse diria que tu fugiu de um manicômio.
-Por favor,confia em mim.Só dessa vez.Acredite,vai ser melhor pra nós dois.Pelo menos por agora.
-Eu vou aceitar tua decisão.Não quer dizer que eu esteja concordando com ela, porque, que fique bem claro,eu não estou.
-Obrigada.Mesmo – senti as lágrimas querendo aflorar dos olhos.
-Mas tu sabe:qualquer coisa que precisar,tipo qualquer coisa MESMO,é só dar um grito.
-Não no sentido literal da palavra – eu ri – Sei sim.
-Pode contar comigo,pra qualquer coisa.Pelos velhos tempos – um sorriso meio infantil apareceu em seu rosto.
-Pelos velhos tempos – concluí.
E nos abraçamos.Aquele abraço bem de criança mesmo,onde meio que se compete pra ver quem dá o abraço mais apertado.Claro que eu perdi,mas isso não vem ao caso.De qualquer jeito,tudo aquilo me deixava bem menos angustiada,como se tivessem tirado uma tonelada de cima das minhas costas.
Por isso eu amava ele,e ficou mais claro que nunca naquela hora.Provavelmente não era o amor que ele pensava que sentia por mim.Era mais aquele negócio de proteção,de saber que eu tinha alguém por perto pra o que eu precisasse.Literalmente reconfortante.
Gabriel percebeu a minha cara de “oi,eu tô feliz” assim que eu coloquei meio pé pra dentro do quarto.
-Bem,parece que minhas preces funcionaram.Como se sente?
-De verdade?Bem melhor – eu não conseguia impedir o sorriso de se estampar pelo meu rosto.Quando se está completamente lascado,qualquer mínima coisa boa é mais que suficiente pra te deixar estupendamente feliz.
-Ótimo que você esteja com um bom-humor tão contagiante.
-Pressinto que lá vem bomba.
-Não é bem isso.Mas a gente tinha combinado de chegar no “F” hoje,lembra?
Enquanto falava,ele virou pra procurar nossa pequena enciclopédia. Note a ironia no “pequena”.
-E não é só isso – ele parou – só por acaso,você leu o jornal hoje?
-Que pergunta,Gabe!Como se você não soubesse que eu nunca leio jornal.
-Pois deveria.Olha a matéria circulada.
Ele arremessou o jornal como um frisbee,um pouco mais alto do que eu conseguiria pegar sentada na cama.Mesmo assim,num reflexo perfeitamente cronometrado,minha mão agarrou o jornal no exato segundo em que ele passava por mim,quase como se tivesse vida própria.
A notícia estava circulada com lápis vermelho,e tinha como manchete era algo do tipo MAIS UM AVIÃO DESAPARECIDO.
“Pela terceira vez em menos de um mês,um avião lotado de passageiros desaparece sem deixar vestígios.O avião da companhia United Airlines, um Boeing com capacidade para 275 passageiros,fora vistoriado minutos antes de levantar voo,o que anula quase totalmente as chances de problemas mecânicos serem a causa do desaparecimento. O avião sumiu dos radares uma hora e treze minutos após decolar do aeroporto de Congonhas,em São Paulo,às duas horas da madrugada de hoje.Já foram providenciados helicópteros ,em mais uma tentativa de localizar não só este,como os outros dois aviões da mesma companhia,sumidos há dezoito e onze dias,respectivamente.Os familiares aguardam desesperadamente por notícias. Em entrevista exclusiva ao nosso repórter,o presidente da companhia...”
-Estranho.Muito estranho.
-Eu pensei a mesma coisa – Gabriel sentou-se nos pés da cama,uma ruga de preocupação na testa –Como é que três aviões simplesmente desaparecem do mapa assim,do nada?Não pode ter sido simplesmente um problema comum.Tem alguma coisa muito esquisita acontecendo.
-Tipo o quê?
-Pra falar a verdade,não sei.Mas sei lá,não parece coisa desse mundo – os olhos azuis estavam sombrios – Admita,seria coincidência DEMAIS tudo isso ser só falha mecânica.
-Um...demônio? – minha voz momentaneamente falhou
-Provavelmente.Temos que ficar de olhos abertos.
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Era quase noite quando meu telefone tocou.
-Alice?
-Oi,Renata.
-Tá ocupada amanhã de tarde?
-Hun,não.Por quê?
-Vamos fazer compras – mesmo pelo telefone,dava pra ver que ela se deliciava com a perspectiva de passar uma tarde inteira dentro de um shopping.
-Pro bebê?
-Não,Alice.ProS bebêS.Pelo amor,onde é que você anda com a cabeça?
Rapidamente,veio à memória a lembrança:não era um bebê,eram gêmeos.Dois pequenos corações,batendo compassadamente,dividindo uma mesma barriga.
-Não acha que tá um pouco,ahn,precipitada demais?Você tem o que, Renata, dois meses? – não me agradava muito a perspectiva de fazer compras.
-Helloooo.Quatro meses.Tem certeza que não tá com amnésia ou algo do tipo?Ou perdeu a noção do tempo?Vamos,diz que sim?Por favorzinho?
Provavelmente,ela não tinha ninguém pra dividir o momento.Me senti egoísta por ter pensado, mesmo que por uma fração de segundo,em dizer não.Afinal,o que poderia haver de ruim?Era só uma tarde inteira dentro de um lugar enorme,vendo ao seu redor somente lojas e mais lojas.
Bem,em casa eu provavelmente veria pilhas e mais pilhas de livros velhos e esquisitamente estranhos.
-Claro que eu vou – uma empolgação espontânea foi transmitida pelo telefone,vinda não sei de onde – Que horas?
-Passa aqui em casa,na volta eu te deixo.Certo assim?
-É,certo então.Até amanhã.
Ótimo programa pra uma sexta-feira à tarde.
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Já eram quase onze da noite,e nada do Gabe aparecer.Isso mesmo,pensei.Nada como não saber o que está acontecendo.Ele tinha saído algumas horas antes,disse que precisava resolver alguns assuntos. Eu já sabia que não adiantava perguntar o que era,já que ele sempre respondia com uma coisa enigmática que só me deixava mais confusa do que se não tivesse falado nada.Mesmo assim,disse que voltaria “antes que eu notasse que ele tinha ido embora”. Ótimo,porque eu já notei faz tempo.Acho que já acostumei com a presença dele, tanto que faz até falta quando não o vejo.Sei lá,como se faltasse um pedaço de mim ou algo do gênero. Como se fôssemos uma identidade única e dependente.Éramos,segundo ele,já que só estava aqui porque eu precisava.
Sabe,às vezes me pegava pensando no quão estranho ia ser se algum dia tudo isso acabasse.Se não tivesse mais sonhos,ou sentidos,ou visões, ou Gabe.Nada.Tudo exatamente como estava antes de toda essa loucura começar.Provavelmente eu sentiria falta do Gabe. Só dele. Dos sonhos e de todo o resto,com certeza não.
Os segundos foram passando.Transformaram-se em minutos,que se converteram numa hora. Já estava começando a lutar contra minhas pálpebras,fazendo força pra elas não fecharem. Mas teve uma hora que eu não aguentei,e simplesmente deitei na cama,me enrolando no meu cobertor mágico anti-monstros,anti-demônios e anti-qualquercoisadomalqueresolvaaparecer.
Apaguei.
Mais um sonho na lista do “confusos”.
Voltando à capela abandonada já conhecida,mesmo eu levando um tempo pra notar que sabia onde estava.Dessa vez,não estava olhado tudo de cima.De novo,tudo escuro.De qualquer jeito,não parecia me incomodar,como se conseguisse enxergar no breu.Meus pés descalços tocavam o chão gelado.Não era uma capela comum,a não ser que fosse uma anormalmente grande,do tipo salas e mais salas completamente escuras.O vento assobiava passando por cima de mim, fazendo barulhos esquisitos no telhado já comprometido pelo tempo.
Alguma coisa gritou.Ou melhor,guinchou.
Não saí correndo;o barulho só serviu pra me fazer dobrar o nível de atenção e cuidado,dando um mínimo passo de cada vez.Do nada,uma calafrio.Alguma coisa ruim estava ali.Muito ruim. Não sabia ao certo se queria ver o que era.Mas,mesmo que não quisesse,era como se tivesse que.Devagar e com cuidado,me aproximei de uma coisa que parecia um corredor,só que muito mais largo que um habitual.Bem no fundo,um aposento fracamente iluminado.Provavelmente, não daria pra me ver se alguma coisa estivesse lá dentro. Mesmo assim, não queria ir. Alguma coisa (provavelmente um senso de autopreservação extremamente oportuno) me puxava pra trás, lutando desesperadamente pra que eu não desse mais nem um passo à frente e apenas saísse correndo desembestada dali o mais rápido possível.
É só um sonho,Alice.O que pode acontecer?
Nada.Se esse fosse um sonho normal.Dos MEUS sonhos,tudo podia se esperar.
Talvez fosse realmente melhor ter voltado enquanto podia.Só me dei conta da merda quando já estava praticamente dentro de um salão fracamente iluminado por tochas alaranjadas, delimitando o círculo quase perfeito e desesperadoramente (n/a: provavelmente essa palavra non ecsiste :D ) grande.A cerâmica do chão estava quebrada em vários pontos,pedaços de paredes e pedras se acumulavam nos cantos.
Mesmo assim,nada se compara ao que ESTAVA lá.
Um monte de coisas estranhas e assustadoras.Demônios.Com garras, dentes afiados, pele enrugada.Escolha um tipo;havia um lá.Alguns tinham um líquido vermelhos escorrendo pelos cantos da boca.Um cheiro estranho de sal e ferrugem invadiu minhas narinas.Sangue.
Estava tão abismada com toda aquela horda de seres malditos que nem notei quando um se aproximou de mim por trás.Quando senti o cheiro putrefato,era tarde demais.Um milésimo de segundo depois,unhas grandes arranhavam meus ombros, as mãos que as tinham me empurrando à força pra um grande pedestal de pedra no meio do salão. Os guinchos ficaram mais fortes, ao mesmo tempo que eu tentava com todas as forças me soltar, e simultaneamente as unhas se fincavam mais e mais, perfurando a carne, causando uma dor imensa.
Eu gritava de dor e de pânico.
Ainda estava assim,completamente atordoada,quando senti alguma coisa me balançando pra frente e pra trás, chamando desesperadamente meu nome.
-Pelo amor de Deus,Alice,acorda!Todo mundo vai acabar vindo aqui de tão alto que tu tá gritando.Acorda!
Abri os olhos.O rosto lívido de Gabe estava à centímetros do meu, enquanto ele pedia freneticamente pra eu parar de gritar.Quando me dei conta que estava no quarto,consegui finalmente calar a boca. Instintivamente,levei as mãos aos ombros,procurando por alguma cicatriz. Não havia nada lá.Ainda bem.
-Foi...foi mais...mais um sonho – as palavras saíam debilmente da minha boca.
-É,acho que deu pra notar.Alguma coisa específica?
-Não,não – ainda estava suando frio – Só alguma coisas estranhas e nojentas querendo me atacar.
-Bem parece que dessa vez foi pior.Tem certeza que...
-Tenho,Gabe.Eu tô bem.Só...preciso dormir um pouco.Sem sonhos.
-Certo,certo.Sem sonhos.Eu tô bem aqui do teu lado.Nada vai vir aqui.
Recostei de novo a cabeça no travesseiro,enquanto fitava o relógio digital exibindo a hora em números verdes.04:04.Lentamente,os números foram ficando mais e mais difusos,até que simplesmente desapareceram.
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Cheguei em casa exausta.Consumida da noite anterior,já que não tinha dormido muito bem,e com os pés doendo de tanto andar dentro de um shopping.Realmente não consigo entender como é que dois bebês vão conseguir usar tantas roupas.
-É sempre melhor prevenir,Alice – Renata explicava,antes de me puxar numa direção qualquer – Olha que coisinha mais meiga!
Se eu já não era a maior fã de compras,provavelmente ficarei traumatizada por um bom tempo.
Depois de jantar e tomar um bom banho quente,relaxei.Nada mais de qualquer coisa que pudesse ocupar minha cabeça.Me joguei no sofá, enrolada num cobertor, zapeando pelos canais de TV à procura de alguma coisa decente pra assistir.Devia ser umas nove horas quando minha mãe chegou em casa.
-Boa noite,Alice – pausa.Nada de beijos,abraços ou alguma coisa do gênero – Quer que marque o cabeleireiro pra você amanhã também?
-Por que eu iria pro cabeleireiro amanhã?
-Temos um jantar,filha.Não leu o lembrete na porta da geladeira?
Não,não li.
-Eu REALMENTE tenho que ir?
-Claro que sim.Os Macedo vão comemorar 17 anos de casados.São velhos amigos nossos,você não faria a desfeita de não aparecer,não é? - ordem implícita:você vai e ponto final.
Algo me disse que esse jantar prometia alguma coisa.